Republicação
Com o blecaute do Weblogger e a consequente mudança repentina de endereço, os últimos textos do meu blog ficaram legados ao limbo. Decidi repostá-los aqui, só pra dar liga entre o blog novo e o velho. Não que eu creia mesmo com alguma convicção de que serão lidos aqui, mas enfim, não custa tentar.
Um conto bobinho...
Soundtracks
Ela me liga às 3 da manhã:
"Preciso de uma música para uma cena..."
"Hein?"
"É João... quero que você me arranje uma música pra uma cena!"
"Que cena?" - minha voz reluta em sair, tamanha é a sonolência.
Ela está escrevendo um argumento, que se tornará roteiro para um filme. É sobre um poeta e sua vida. Mas a cena para qual ela pediu minha ajuda é especificamente sobre a morte do poeta. Uma "morte no mar", segundo ela me conta:
"Ele está com câncer e sabe que vai morrer. Então ele caminha em direção ao mar e terminamos a cena assim".
"Olha Irene, não posso compor nada agora. Tô gravando um disco, já na fase final..."
"Porra, João! Que custa? Você faz a merda da música em cinco minutos, depois ainda dá tempo de incluir ela no teu disco!"
"Caralho, Irene! Cê tá pensando que eu sou um juke box? Eu não cago música não, porra! Você não sabe o sacrifício que foi pra mim compor as doze músicas desse meu álbum. E ficou uma merda. A crítica vai cair matando em cima de mim. Vão dizer que eu tô decaindo. Vai ser um fiasco. Não tenho nem uma música de trabalho decente! A fase tá brava, falta de inspiração total!"
Ouço um suspiro de Irene. Ela definitivamente não me ligou para ouvir histórias de um músico fracassado. Ela confia em mim, confia na minha inspiração, confia nos meus insights. Ela sabe que eu sou capaz de compor uma música para uma morte no mar.
"Já me acordou mesmo. Vem pra cá, vai! Você me fala do personagem, eu pego o violão e a gente faz alguma coisa!"
Na manhã seguinte, Irene me acorda com um beijo na nuca. Ela está vestindo uma camiseta minha, estampada com uma foto do Charles Chaplin. Me traz o café e pergunta:
"Você acha mesmo que eu devo incluir Oswaldo Montenegro na trilha comprada?"
"Por que não?"
"Ora, João! Eu quero fazer um filme comercial!"
O Oswaldo Montenegro é um incompreendido.
Meu disco saiu em dezembro. Um fiasco, de crítica e público. O filme de Irene saiu uns dois anos depois. Fiasco de público, mas bem acolhido pela crítica. As resenhas costumavam elogiar o roteiro, a fotografia e tudo o mais, só ressaltando que a trilha sonora, assinada por um certo João Pessoa (músico que - no seu disco de estréia - se destacou na nova safra mas que depois, nos trabalhos seguintes, caiu no lugar comum), deixava a desejar. Anos depois Irene me contou que se inspirou em mim para criar o poeta. Logo em mim, que sempre detestei o mar.
"Eu bem que disse pra você colocar Oswaldo Montenegro na cena final..."
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Outro conto bobinho...
Criador e criatura
Um camarada barbudo estava andando pelo calçadão de Copacabana, de madrugada, quando viu uma moça bêbada, se equilibrando nas pernas, andar em sua direção. Ela era a cara da Mariana Ximenes.
"Estou reconhecendo você..."
O rapaz olhou-a com nojo. Uma puta decadente, de maquiagem borrada. Mas era a cara da Mariana Ximenes.
"Você sabe quem eu sou? Sabe porque eu vim parar aqui? É tudo culpa sua!"
Esticou o braço e, se não estivesse bêbada, o tapa que desferiu teria acertado em cheio o rosto do jovem músico. Porém a mão errou o alvo e a moça se desequilibrou e foi ao chão, onde ficou murmurando, entre soluços:
"Eu te dei fama, dinheiro, popularidade. Mas eu era muito burra pra você, né? Você não precisava de gente correndo atrás de você e invadindo teu quarto no hotel. Você precisava era de STATUS! Intelectualzinho de merda!"
O rapaz virou as costas e continuou andando. Mas a puta, implacável, o seguiu, ainda dizendo:
"Meu nome fez o teu nome. Quem era você antes de mim? Um nada. Um alguém sem carinho. Mas eu te dei tudo e você cuspiu em cima de mim. Me esqueceu, me jogou no lixo. Eu era pop e caí no funk. Você cada vez mais MPB. Banquinho, violão, dor-de-corno, maconha, Chico Buarque, o caralho! Pra mim, sobras: uma ou outra lembrança, um ou outro recorte de revista."
"Me deixa em paz, Anna!"
"Ora! Lembrou meu nome? Lembrou daquele nome que você abençoou, porque ele colou no cérebro de todos os pré-adolescentes e te ergueu mais alto do que você sempre sonhou?"
"Você sabe que não é nada disso. Me deixa em paz! Me esquece!" "Não, Marcelo. Você é que já me esqueceu".
Marcelo apressou o passo e saiu dali, deixando Anna Júlia caída na sarjeta. Ele tinha vergonha daquela mulher que tanto amara no início, mas que agora se deitava até com forrozeiros de quinta categoria. E Anna Júlia, afogada em solidão, sabia que ele já não queria o seu amor, que ele já não gostava dela e que ela não era quem ele sempre sonhou. E que não adiantava reconquistar seu amor todo para ela.
Postado originalmente em: www.freud_aperta_um.weblogger.com.br, no dia 23 de novembro de 2005.
Um conto bobinho...
Soundtracks
Ela me liga às 3 da manhã:
"Preciso de uma música para uma cena..."
"Hein?"
"É João... quero que você me arranje uma música pra uma cena!"
"Que cena?" - minha voz reluta em sair, tamanha é a sonolência.
Ela está escrevendo um argumento, que se tornará roteiro para um filme. É sobre um poeta e sua vida. Mas a cena para qual ela pediu minha ajuda é especificamente sobre a morte do poeta. Uma "morte no mar", segundo ela me conta:
"Ele está com câncer e sabe que vai morrer. Então ele caminha em direção ao mar e terminamos a cena assim".
"Olha Irene, não posso compor nada agora. Tô gravando um disco, já na fase final..."
"Porra, João! Que custa? Você faz a merda da música em cinco minutos, depois ainda dá tempo de incluir ela no teu disco!"
"Caralho, Irene! Cê tá pensando que eu sou um juke box? Eu não cago música não, porra! Você não sabe o sacrifício que foi pra mim compor as doze músicas desse meu álbum. E ficou uma merda. A crítica vai cair matando em cima de mim. Vão dizer que eu tô decaindo. Vai ser um fiasco. Não tenho nem uma música de trabalho decente! A fase tá brava, falta de inspiração total!"
Ouço um suspiro de Irene. Ela definitivamente não me ligou para ouvir histórias de um músico fracassado. Ela confia em mim, confia na minha inspiração, confia nos meus insights. Ela sabe que eu sou capaz de compor uma música para uma morte no mar.
"Já me acordou mesmo. Vem pra cá, vai! Você me fala do personagem, eu pego o violão e a gente faz alguma coisa!"
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Na manhã seguinte, Irene me acorda com um beijo na nuca. Ela está vestindo uma camiseta minha, estampada com uma foto do Charles Chaplin. Me traz o café e pergunta:
"Você acha mesmo que eu devo incluir Oswaldo Montenegro na trilha comprada?"
"Por que não?"
"Ora, João! Eu quero fazer um filme comercial!"
O Oswaldo Montenegro é um incompreendido.
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Meu disco saiu em dezembro. Um fiasco, de crítica e público. O filme de Irene saiu uns dois anos depois. Fiasco de público, mas bem acolhido pela crítica. As resenhas costumavam elogiar o roteiro, a fotografia e tudo o mais, só ressaltando que a trilha sonora, assinada por um certo João Pessoa (músico que - no seu disco de estréia - se destacou na nova safra mas que depois, nos trabalhos seguintes, caiu no lugar comum), deixava a desejar. Anos depois Irene me contou que se inspirou em mim para criar o poeta. Logo em mim, que sempre detestei o mar.
"Eu bem que disse pra você colocar Oswaldo Montenegro na cena final..."
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Outro conto bobinho...
Criador e criatura
Um camarada barbudo estava andando pelo calçadão de Copacabana, de madrugada, quando viu uma moça bêbada, se equilibrando nas pernas, andar em sua direção. Ela era a cara da Mariana Ximenes.
"Estou reconhecendo você..."
O rapaz olhou-a com nojo. Uma puta decadente, de maquiagem borrada. Mas era a cara da Mariana Ximenes.
"Você sabe quem eu sou? Sabe porque eu vim parar aqui? É tudo culpa sua!"
Esticou o braço e, se não estivesse bêbada, o tapa que desferiu teria acertado em cheio o rosto do jovem músico. Porém a mão errou o alvo e a moça se desequilibrou e foi ao chão, onde ficou murmurando, entre soluços:
"Eu te dei fama, dinheiro, popularidade. Mas eu era muito burra pra você, né? Você não precisava de gente correndo atrás de você e invadindo teu quarto no hotel. Você precisava era de STATUS! Intelectualzinho de merda!"
O rapaz virou as costas e continuou andando. Mas a puta, implacável, o seguiu, ainda dizendo:
"Meu nome fez o teu nome. Quem era você antes de mim? Um nada. Um alguém sem carinho. Mas eu te dei tudo e você cuspiu em cima de mim. Me esqueceu, me jogou no lixo. Eu era pop e caí no funk. Você cada vez mais MPB. Banquinho, violão, dor-de-corno, maconha, Chico Buarque, o caralho! Pra mim, sobras: uma ou outra lembrança, um ou outro recorte de revista."
"Me deixa em paz, Anna!"
"Ora! Lembrou meu nome? Lembrou daquele nome que você abençoou, porque ele colou no cérebro de todos os pré-adolescentes e te ergueu mais alto do que você sempre sonhou?"
"Você sabe que não é nada disso. Me deixa em paz! Me esquece!" "Não, Marcelo. Você é que já me esqueceu".
Marcelo apressou o passo e saiu dali, deixando Anna Júlia caída na sarjeta. Ele tinha vergonha daquela mulher que tanto amara no início, mas que agora se deitava até com forrozeiros de quinta categoria. E Anna Júlia, afogada em solidão, sabia que ele já não queria o seu amor, que ele já não gostava dela e que ela não era quem ele sempre sonhou. E que não adiantava reconquistar seu amor todo para ela.
Postado originalmente em: www.freud_aperta_um.weblogger.com.br, no dia 23 de novembro de 2005.
1 Comments:
Lindo, lindo e lindo!!
Ameiiiiiii=**
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