Morder a vida com todos os dentes
Quando meu bisavô paterno, o velho Nicolás, resolveu sair de Granada, Espanha, se enfiar um navio e vir pra cá, no começo do século XX, ninguém disse pra ele que seria fácil. Mas ele - sabe Deus por quê! - resolveu fazer isso, e veio, e se estabeleceu como funcionário da prefeitura de São Paulo, e teve uma penca de filhos, supostas amantes (atraídas pelo charme de um espanholzão forte e charmoso) e um enfarte quando ainda não podia ser chamado de velho. Deixou pro meu avô, como herança, o próprio nome que ganhou quando se naturalizou brasileiro, Nicolau Gimenez Garcia, sendo meu avô o Gimenez Garcia Filho.
Quando meu avô, o velho Seu Nicola, começou a trabalhar na prefeitura, ainda moleque, como aprendiz, tendo que subir num caixotinho de madeira pra alcançar a bancada, ninguém disse pra ele que a vida era fácil. E realmente, a vida não é fácil pra um cara que tem três filhos pra criar e um temperamento difícil. Mas porra, meu avô até que se saiu bem. Hoje assiste os westerns dele na TV à cabo, lê o jornal, não bebe mais, não fuma mais e até o refrigerante cortou. É bem verdade que tem uma penca de manias, que estão sendo transmitidas de geração pra geração (não, ainda não chegou a hora de falar do meu pai), mas é um cidadão-padrão, casado há muitas décadas com a minha vó, uma esposa à moda antiga, também filha de espanhóis, faladeira, sempre querendo agradar e às vezes não agradando. Pra ela também ninguém deve ter dito que a vida era fácil.
Quando meu pai teve que largar o samba pra correr atrás do meu pão, ele deve ter pensado "é, nêgo. A vida não é fácil". Minha mãe, então... Tinha acabado de perder o pai, sustentava a casa e engravidou de um namorado com o qual ela não tinha planos de se casar. E se casou. E aí foi o mundo nas costas dela, como é até hoje. Mãe, marido e filhos. Mas ela tá aí na luta. Nunca me disse que a vida é fácil, mas faz de tudo pra torná-la fácil pra mim. Ela e meu pai, aliás. Nunca ouvi, deles, palavras de desconsolo. Já vi os dois em situação difícil, mas eles sempre me incentivaram a seguir caminhando.
A vida não foi fácil pro meu avô materno, alcoolatra, trabalhador, homem conhecido pela gentileza e educação quando não estava de porre. Não foi fácil pra minha vó materna, que fazia faxina pra fora, que criou a filha com dificuldade, que se desesperou com o vício do marido e que depois, quando ele se foi e os netos vieram, os criou pros pais, meus pais, poderem trabalhar fora.
A vida não é fácil pra dona Maria, copeira do hospital Pérola Byington, não é fácil pro Severino, porteiro de prédio chique em Higienópolis, nem pro Ademir, motorista da linha Jd. Fontalis-Barra Funda. No entanto, cada um do seu jeito, eles estão tentando. Tentando morder a vida com todos os dentes, na fúria de quem quer arrancar pedaço. O mendigo Zé Sujo que, quando deixam, toma banho no chafariz do Largo da Memória, não tem dentes, mas morde a vida com as gengivas, e morde de tal jeito que dilacera, e ele ri, ele ri desenfreado, sem culpa, sem medo, porque a vida é isso aí mesmo.
E eu, que não vim de outro país, que não lavo casa dos outros, que não tenho vício nem doença, que comecei a trabalhar com 23 anos de idade e na profissão que eu escolhi pra mim, eu que tenho tudo que meus pais puderam dar, além de não ser (muito) feio nem (muito) burro, eu fico nessa de olhar a vida, com a boca cheia de saliva, e não morder. Esperando o prato esfriar, o garçom passar, a fome chegar. Esperando? O amor? Que amor? Petiscando sonhos, pensamentos fixos, bobocas, que me fazem perder um tempo do cacete. Que marola é essa? Quando foi que eu fiquei desse jeito? Esperando cair migalha da mesa? Sendo que na minha frente tem de tudo, do bom e do melhor?
Sabe qual é, meu irmão? Cansei dessa pataquada toda. Afiei meus caninos e agora sim, com meus trinta e poucos dentes, meus vinte e poucos anos, saúde de ferro e nervos de aço, eu decidi que vou pra luta. Foda-se quem for contra. Tem muita gente, viva e morta, que eu não posso mais desapontar.
4 Comments:
Realmente, a vida não é fácil. Nada fácil.
Ainda bem que além de dentes fortes, temos bons exemplos de vida a seguir.
Se bem que seria nada mal aliviarem pro nosso lado né? Nem que fosse de vez em nunca... rs
Bjo!
Este comentário foi removido pelo autor.
"Quando foi que eu fiquei desse jeito?"
Quando crianças, sem dentes pra morder porra nenhuma, sem saber andar pra pegar, éramos assim.
Mas depois vai-se crescendo e o upgrade não ocorre (ou dá pau).
Bom, o importante é que o primeiro passo para a mudança está dado!
Grande Abraço!
e todos nós nos levantamos.
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