quarta-feira, julho 01, 2009

Morder a vida com todos os dentes

Quando meu bisavô paterno, o velho Nicolás, resolveu sair de Granada, Espanha, se enfiar um navio e vir pra cá, no começo do século XX, ninguém disse pra ele que seria fácil. Mas ele - sabe Deus por quê! - resolveu fazer isso, e veio, e se estabeleceu como funcionário da prefeitura de São Paulo, e teve uma penca de filhos, supostas amantes (atraídas pelo charme de um espanholzão forte e charmoso) e um enfarte quando ainda não podia ser chamado de velho. Deixou pro meu avô, como herança, o próprio nome que ganhou quando se naturalizou brasileiro, Nicolau Gimenez Garcia, sendo meu avô o Gimenez Garcia Filho.

Quando meu avô, o velho Seu Nicola, começou a trabalhar na prefeitura, ainda moleque, como aprendiz, tendo que subir num caixotinho de madeira pra alcançar a bancada, ninguém disse pra ele que a vida era fácil. E realmente, a vida não é fácil pra um cara que tem três filhos pra criar e um temperamento difícil. Mas porra, meu avô até que se saiu bem. Hoje assiste os westerns dele na TV à cabo, lê o jornal, não bebe mais, não fuma mais e até o refrigerante cortou. É bem verdade que tem uma penca de manias, que estão sendo transmitidas de geração pra geração (não, ainda não chegou a hora de falar do meu pai), mas é um cidadão-padrão, casado há muitas décadas com a minha vó, uma esposa à moda antiga, também filha de espanhóis, faladeira, sempre querendo agradar e às vezes não agradando. Pra ela também ninguém deve ter dito que a vida era fácil.

Quando meu pai teve que largar o samba pra correr atrás do meu pão, ele deve ter pensado "é, nêgo. A vida não é fácil". Minha mãe, então... Tinha acabado de perder o pai, sustentava a casa e engravidou de um namorado com o qual ela não tinha planos de se casar. E se casou. E aí foi o mundo nas costas dela, como é até hoje. Mãe, marido e filhos. Mas ela tá aí na luta. Nunca me disse que a vida é fácil, mas faz de tudo pra torná-la fácil pra mim. Ela e meu pai, aliás. Nunca ouvi, deles, palavras de desconsolo. Já vi os dois em situação difícil, mas eles sempre me incentivaram a seguir caminhando.

A vida não foi fácil pro meu avô materno, alcoolatra, trabalhador, homem conhecido pela gentileza e educação quando não estava de porre. Não foi fácil pra minha vó materna, que fazia faxina pra fora, que criou a filha com dificuldade, que se desesperou com o vício do marido e que depois, quando ele se foi e os netos vieram, os criou pros pais, meus pais, poderem trabalhar fora.

A vida não é fácil pra dona Maria, copeira do hospital Pérola Byington, não é fácil pro Severino, porteiro de prédio chique em Higienópolis, nem pro Ademir, motorista da linha Jd. Fontalis-Barra Funda. No entanto, cada um do seu jeito, eles estão tentando. Tentando morder a vida com todos os dentes, na fúria de quem quer arrancar pedaço. O mendigo Zé Sujo que, quando deixam, toma banho no chafariz do Largo da Memória, não tem dentes, mas morde a vida com as gengivas, e morde de tal jeito que dilacera, e ele ri, ele ri desenfreado, sem culpa, sem medo, porque a vida é isso aí mesmo.

E eu, que não vim de outro país, que não lavo casa dos outros, que não tenho vício nem doença, que comecei a trabalhar com 23 anos de idade e na profissão que eu escolhi pra mim, eu que tenho tudo que meus pais puderam dar, além de não ser (muito) feio nem (muito) burro, eu fico nessa de olhar a vida, com a boca cheia de saliva, e não morder. Esperando o prato esfriar, o garçom passar, a fome chegar. Esperando? O amor? Que amor? Petiscando sonhos, pensamentos fixos, bobocas, que me fazem perder um tempo do cacete. Que marola é essa? Quando foi que eu fiquei desse jeito? Esperando cair migalha da mesa? Sendo que na minha frente tem de tudo, do bom e do melhor?

Sabe qual é, meu irmão? Cansei dessa pataquada toda. Afiei meus caninos e agora sim, com meus trinta e poucos dentes, meus vinte e poucos anos, saúde de ferro e nervos de aço, eu decidi que vou pra luta. Foda-se quem for contra. Tem muita gente, viva e morta, que eu não posso mais desapontar.

4 Comments:

Blogger Liliane Akamine said...

Realmente, a vida não é fácil. Nada fácil.
Ainda bem que além de dentes fortes, temos bons exemplos de vida a seguir.
Se bem que seria nada mal aliviarem pro nosso lado né? Nem que fosse de vez em nunca... rs

Bjo!

julho 01, 2009 10:12 PM  
Blogger Liliane Akamine said...

Este comentário foi removido pelo autor.

julho 01, 2009 10:12 PM  
Blogger well souza said...

"Quando foi que eu fiquei desse jeito?"
Quando crianças, sem dentes pra morder porra nenhuma, sem saber andar pra pegar, éramos assim.
Mas depois vai-se crescendo e o upgrade não ocorre (ou dá pau).
Bom, o importante é que o primeiro passo para a mudança está dado!
Grande Abraço!

julho 04, 2009 3:03 AM  
Blogger A. Diniz said...

e todos nós nos levantamos.

julho 08, 2009 12:00 PM  

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