segunda-feira, dezembro 12, 2005

Ratos, cobras, humanos e a luta pela vida

Lembro-me de ter visto na tevê, certa vez, uma matéria gravada no Instituto Butantã. A matéria era sobre cobras e outros bichos peçonhentos. Desse dia ficou uma imagem na minha cabeça que, de certa forma, me marcou: mostraram como as cobras eram alimentadas. Então estava lá a sucuri (ou alguma outra serpente qualquer) dentro de um aquário, na posição estática, lenta e conformada das cobras, especialmente as que vivem em cativeiro. Nisso o biólogo tirava de uma gaiola um simpático ratinho branco, desses que a gente sempre quis ter como bicho de estimação em determinada fase da vida. Então o ratinho, subitamente, é jogado dentro do aquário no qual está a cobra, enrolada num galho. A partir daí, a coisa é realmente chocante: o rato fica paralisado de pavor, ao mesmo tempo que parece estar em transe ao se sentir mirado pelo olhar hipnotizador de sua futura predadora. A cobra fica uns bons segundos parada, como se estivesse indiferente ao almoço servido. Talvez ela esteja, naqueles segundos, saboreando docemente a sua superiodade e a certeza matemática que tem de que triunfará sobre aquele ser vivo insignificante. Talvez ela visualize de imediato o processo de deglutição, desde o bote certeiro até os dentes cravados na mandíbula do roedorzinho, matando este aos poucos. A cobra deve mesmo sentir um êxtase profundo, enquanto o rato deve sentir-se paradoxalmente tomado de desespero e resignação. Enfim passam-se os segundos e a agonia do rato termina: a cobra anima-se em atacar e dá o bote rápido e certeiro. O rato morre enquanto seus ossos são triturados por uma boca que sequer percebe a grandeza de Deus quando criou todos os seres, dando a alguns certas vantagens sobre outros em determinadas circunstâncias.
Alguns céticos poderiam, com esse exemplo, questionar a Justiça Divina, já que nesse caso o rato foi condenado sem apelação e defesa a uma morte cruel e humilhante. Mas será que é feliz a cobra, sendo obrigada a viver num aquário e dependendo da caridade alheia? Será que não se sente ela própria humilhada por estar sempre em posição privilegiada diante do rato, mas desfavorável diante do mundo? Se me perguntassem quem eu gostaria de ser, se o rato ou a cobra, confesso que não saberia o que responder. E que pra mim seria um dilema ficar pensando nisso, porque a injustiça dói, tanto para o injustiçado quanto para o favorecido.
***
Outro dilema que sempre me impressionou muito foi o de um roedor que por meses atazanou a vida de meus pais. Morávamos num sobrado que era, na verdade, um recorte da fauna brasileira: era povoado por seres humanos, baratas voadoras enormes e, vez por outra, para desespero do meu pai, apareciam ratazanas gordas do tamanho de gatos em casa. Pois bem, entre esses roedores, existia um que desafiava meu progenitor. Meu pai até hoje narra - até com uma ponta de orgulho - os feitos daquele rato, que se enfiava em buracos com volume menor do que seu corpo, desafiando a física e a geometria. Foram noites seguidas perseguindo o traquinas pela cozinha, vassoura na mão, jornadas frustradas pela madrugada adentro.
Em 1991 saímos do sobrado e viemos para o apartamento onde moramos até hoje. Deixávamos para trás todas as baratas e ratos. Pelo menos era o que pensávamos.
Eis que, feita a mudança, estavam meus pais na sala tomando uma cerveja quando ouvem um barulho na cozinha. Meu pai, que sempre foi um sujeito preocupado com as coisas de casa, correu para ver o que era. O barulho vinha do fogão, mais precisamente de dentro do forno. Foi então que eles descobriram a última peraltice de seu velho amigo rato: afeiçoara-se tanto o bicho aos seus companheiros de perseguições noturnas, que resolvera mudar-se também junto com eles, vindo confortavelmente instalado na classe econômica de um fogão. Pensando como um rato, entendo o lado dele: primeiro que eu também sentiria falta de meus pais se fosse ele. Afinal, a gente sempre se apega às coisas que nos cercam, incluindo aí os nossos inimigos. Acabamos, de um forma ou de outra, nos sentindo atrelados a eles, e a sensação de vazio é enorme para uma pessoa que perde de alguma forma seu maior rival. Um sentimento que se assemelha vagamente à morte de um amigo, por exemplo. A vida perde parte de seu sentido. Afinal de contas, ninguém conhecia tão bem aquele rato quanto meus pais e ele, no fundo de sua mentezinha de mamífero, devia saber disso. Se é pra ser perseguido, que seja por alguém que já demonstrou méritos nesse sentido (mas posso estar fazendo aqui uma abstração totalmente estapafúrdia, e nesse caso peço ao rato - esteja ele onde estiver - que me perdoe pela minha pretensão). Além disso, o interior de um fogão deve ser um local conveniente para se alojar, quente e com farelos de alimentos convenientemente à nossa disposição de animal marginal.
Bom, meu pai é que não gostou muito daquilo, pois já começava a pensar no regulamento interno do condomínio, que proibia a presença de ratos não-vacinados nos apartamentos. Talvez hoje em dia meu pai sinta, ainda que não nos diga, um vazio dentro do peito por não ter mais as madrugadas perdidas atrás do rato. Mas naquele dia, sem alternativa, ele agiu como um assassino frio e calculista. Deu umas porradas no fogão pra ver se o rato sairia de lá de dentro e percebeu que isso não ocorreria. Claro, o bicho se especializara nesse tempo todo em se esconder, se entocar, desafiar a física e a geometria, sobreviver, etc. Então a mente de meu pai bolou a armadilha cruel: fechou a passagem da cozinha para a lavanderia com dois engradados de cerveja empilhados, para que o rato não tivesse para onde fugir. Evacuou a cozinha para que ninguém o atrapalhasse naquele combate final. E no requinte máximo da crueldade, após munir-se de uma vassoura, acendeu o forno.
Meu pai sempre nos deixou claro, em seus relatos, a bravura daquele rato. Ele sabia que se ficasse naquele forno, morreria torrado. Mas sabia também que se saísse, encontraria meu pai esperando-o com a vassoura na mão - e ele sabia disso porque, de minuto em minuto, desesperado, punha a cabecinha pra fora pra calcular que chance teria de sair dali e escapar. Mas via meu pai e voltava pra dentro do forno. E ficou o pobre animal por muito tempo naquele impasse, o tal dilema cruel a que me referi no começo desse relato. Ele que tantas vezes triunfara diante de meu pai, sabia que suas chances agora eram reduzidas, nas circunstâncias em que se encontrava. Decidiu ficar o maior tempo possível dentro do forno, assim como Jack e Rose procuraram ficar o máximo de tempo possível no Titanic antes que esse afundasse. Até o momento em que não deu mais: agoniado, o rato saiu de dentro do forno. O que fazer, ficar dentro do Joelma em chamas e queimar até os ossos ou saltar para a morte de uma vez? O rato escolheu saltar para cima de meu pai. Foi para cima do velho com fúria, atacando para se defender. Antes ainda tentou saltar pro sobre os engradados de cerveja, e meu pai conta esse lance como mais uma proeza do rato: deu um pulo que surpreendeu a todos e foi chocar-se alguns metros acima com o segundo engradado de cerveja. Por pouco não conseguiu um milagre que lhe garantisse a sobrevivência. Caiu no chão desnorteado. Tomou a vassourada fatal desferida por meu pai. Morreu como um herói.

Dedico esse texto aos roedores. São seres que a espécie humana repudia, mas que eu aprendi, por meio de observações, a louvar pelo instinto de sobrevivência e pelo espírito de luta. Os ratos não se rendem nunca. Talvez rendam-se apenas em casos extremos, como no caso de estarem à mercê de cobras, sem chance de tentarem uma defesa. Já os seres humanos se rendem sempre.

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Puxa, Rafa, q triste.... Eu não sou rendida... Mas, gostei do ponto de vista como sempre..... E, pelo amor, a comparação com o Titanic valew troféu joinha (deu pra rir).... bjs

dezembro 12, 2005 12:08 PM  
Anonymous Anônimo said...

hum... rato?
acho melhor não.
=]

dezembro 12, 2005 3:49 PM  
Blogger A. Diniz said...

Ratos e homens possuem mais coisas em comum que os poetas e os suicidas possam achar. Até a Ciência se rendeu ao fato.

dezembro 12, 2005 10:10 PM  
Anonymous Anônimo said...

Be strong! Você é um homem ou um rato?

dezembro 13, 2005 9:07 PM  
Anonymous Anônimo said...

Pois é... Vc se supera a cada dia!!!! De qualquer forma, não gostaria de passar por esses dilemas, nem de ter um ratinho tão determinado em minha residência... heheheh

Obs: E viva os direitos humanos!

dezembro 14, 2005 10:36 AM  
Anonymous Anônimo said...

tb gostei da comparação com o titanic!!! hahahahaa!!!!!!!

dezembro 15, 2005 11:40 AM  

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