sexta-feira, agosto 31, 2007

Ascensão e decadência

Seu Antônio recebe o repórter Pedroso e sua desconfiança parece menor do que a sentida pelo jornalista quando combinaram a entrevista. Com mais de 80 anos, o homem é o registro pessoal de toda a história do Morro do Formiga e, por tabela, de parte importante do tráfico na cidade. Seu Antônio oferece água, café, cerveja. Pedroso aceita a cerveja, os dois sentam-se. O gravador é ligado. Após uma conversa preliminar sobre o tempo, sobre a vida, sobre política, entram no assunto que levara o jornalista até ali: a história de Zelão, o criminoso morto na semana anterior. Uma lenda das páginas policiais.

- E é como eu lhe digo, doutor: ninguém foge da sua vocação. Moro nesse morro desde que começaram a aparecer os primeiros barracos, quando teve o tal êxodo das outras favelas pra cá, porque isso aqui era isolado do mundo, da polícia e da especulação imobiliária.

- Desculpe interromper, mas preciso perguntar: o senhor estudou, seu Antônio?

- Até a quarta série, doutor. Mas leio muito jornal.

- Tá certo. Continue.

- Bom, doutor, como eu tava falando, ninguém foge da sua vocação. Porque eu conheci o pai do Zelão, o pai do sujeito que era dono de todo esse pedaço. Era um homem severo, que tinha servido o exército e tudo mais. Quando melhorou de vida, queria tirar a família da favela e foi aí que o menino se desgarrou...

- Se desgarrou? Como assim?

- O pai queria que o menino fosse polícia. Ou militar, como ele mesmo era. E o menino viveu muito tempo na favela vendo morador apanhando de polícia e tinha nojo dessa raça. No dia que eles iam se mudar, bateu boca com o pai, levou porrada e saiu no pinote. Daí se criou sozinho por aí, nas quebrada. Mas num era um moleque comum, sabe? Porque o que a gente sabe que acontece é que esses moleque desde muito novinho já começa a cheirar cola, a fazer qualqué serviço em troca de merreca... Ficam só empinando pipa e cheirando cola, tudo doidão de cola. O Zelão não. O Zelão era muito inteligente.

- Inteligente?

- É. Ele tinha uma mente que... uma mente... (pensando)... Uma mente tipo empresarial mesmo, sabe?

- Como assim?

- Doutor, o senhor já deve ter visto caso de molequinhos que vão trabalhar em banco como office-boy e terminam como gerente, superintendente, presidente, né? O Zelão começou no tráfico como office-boy e chegou a presidente da República da favela. Simplesmente porque tinha uma cabeça voltada pro esforço, pro sucesso. Nunca cheirou uma carreira na vida. Eu acho que ele era tipo profissional. Tava no tráfico pra ganhar dinheiro e ter poder.

- E como ele passou de office-boy pra dono do morro?

- Ah doutor, isso é uma longa estória. O Silvio Santos tem o livro que conta a vida dele, de camelô a dono do SBT. O Zelão devia ter um livro também, contando a história de sucesso dele. Doutor, eu acho o Zelão um filho-da-puta, mas eu não posso deixar de ficar admirado com tudo que ele fez pra conseguir o que tinha.

- (Faz uma pausa pra pensar e retoma): Bom, o Zelão começou no tráfico como aviãozinho, que é como todo moleque começa. Mas ele desde pequeno era muito esperto e muito safo. Além disso, era gordinho e bom de briga, que conta muito pra pivete de favela. Ao memo tempo, era um moleque respeitador, que não mexia com morador e até pegava os moleque que azucrinava por aí. Corre um boato que ele já com uns 12, 13 anos, um pouco antes da família sair daqui, já tinha matado um moleque mais velho e desovado o presunto lá na Tijuca. Nunca provaram que foi ele, mas aqui no morro sempre dizem que o primeiro homicídio dele foi esse.

- Ele já andava armado nessa idade?

- Infelizmente, doutor, a maioria dos moleque da favela anda armado nessa idade. Mas o Zelão, pelo que ouvi dizer, pegou na arma do pai. Mas também num sei se é verdade...

- Hum...

- Bão, aí então o Zelão entrou na boca do Mário Morato, que era um ex-policial que tinha virado traficante. O Mário Morato conhecia bem o pai do Zelão e os dois não se batiam. Por isso que ele aceitou o menino na boca logo de cara, pra fazer desforra pro hômi. E quando o pai soube que o menino tava na boca do Mário Morato é que ele não quis mais saber mesmo, falou "foda-se" e nunca mais tentou vir buscar o moleque. O Mário Morato sentiu que o Zelão tinha o jeito pra coisa, tinha... não sei explicar, doutor... ele tinha aquela coisa de ter nascido pro crime...

- Na minha profissão, chamamos isso de feeling...

- É, pode ser isso que o doutor tá falando mesmo... O negócio é que o Zelão foi ganhando a confiança do Mário Morato e foi se destacando do resto da bandidage pela inteligência e pelas boas idéias que dava pra chefia. Ele com 16 anos foi quem bolou o plano pro Mário Morato tomar a boca do Acássio...

- Quem é Acássio?

- ERA, doutor! Porque Acássio já é finado. Acássio era dono de metade do morro, e o Mário Morato da outra. Vou explicar pro senhor: o Acássio era um sujeito que herdou uma boca de um traficante mais antigo quando ele foi preso, e fez a boca crescer. No começo era ele sozinho, mas depois o Morato foi expulso da polícia e abriu o negócio concorrente. O Acássio ficou com duplo ódio. Primeiro porque ele não podia admitir concorrência. Segundo porque ele odiava polícia e o viado lá era polícia. Então os dois vivia em pé de guerra, mas cada um tinha seu lado da favela, que controlava com sua boca. Mas a boca do Acássio era mais rica e ele tinha mais poder e aceitação aqui no morro. Foi a assistência que o Zelão deu pro Morato que fez as coisas mudarem.

- Que assistência o Zelão deu?

- Bom, o Zelão bolou o plano pra tomar a boca do Acássio, como eu disse. E era um plano corajoso e dificil. Primeiro ele tinha que se bandear pro outro lado, ou seja, passar pra boca do Acássio. E todo mundo sabia que ele desde pivetinho era hômi do Morato. Num podia dar certo uma coisa dessas, né doutor?

- E deu?

- Deu. O Zelão pediu pra darem uma surra nele. Mas uma surra bem dada mermo. Ele decidiu se sacrificar pra fazer dar certo. Dizem que os colega de boca ficaram com dó e não queriam bater nele, mas aí ele começou a xingar geral as mães da rapaziada, pra dar um gás nos bandidos. Resultado: no dia seguinte ele apareceu na boca do Acássio todo fudido, estrupiado, falando que tinha sido expulso da boca e que tava jurado de morte pelo Mário Morato.

- E o Acássio caiu?

- Que nem patinho, doutor. E os olhinho dele brilhou, sabe? Porque todo mundo na favela sabia que, apesar de novo, o Zelão era o braço direito do Mário Morato. E então o Acássio viu que era uma ótima oportunidade de ter todas as informações do que acontecia do outro lado. Ele prometeu pro Zelão que ajudava ele a se vingar se, em troca, ele contasse todos os esquema e ajudasse o pessoal de lá a tomar a boca do Mário.

- O senhor aceita um cigarro?

- Parei de fumar faz muitos anos, doutor. O vício é foda, o senhor sabe. Mas pode fumar aí que eu não ligo. (Retomando): Bom, a primeira parte do plano deu certo. A segunda é que seria mais dificil e mais demorada. Como o Mário Morato queria dar o bote perfeito, na hora certa, ele deixou o Zelão trabaiar e ganhar a confiança do Acássio. Nisso se passaram muitos anos e o Zelão gerenciou a boca do Acássio nesse tempo. Tinha disciplina e nunca deixou os hômi ver ele de papo com gente do Mário Morato, senão ia tudo pras cucuias. Ao mermo tempo, ele sempre dava um jeito de foder com o Acássio na surdina. Avisava o Morato quando o Acássio ia tentar dar ataque na boca dele e, desse jeito, nunca dava certo. Mas ele conquistou a confiança do Acássio tão bem que, mesmo desconfiado que tinha X9 dando serviço pro outro lado, ele nunca achou que era o Zelão. E ficou nessas até o dia que o Zelão sentiu que tava tudo pronto pro Grande Golpe.

- E como foi o Grande Golpe?

- Foi a prova de que o Zelão tinha vocação pra um dia ser dono de tudo aqui. Ele organizou uma festa na boca do Acássio com muita bebida e sacanage. A desculpa que ele usou é que ele tinha conseguido comprar os hômi mais próximo do Morato e que em poucos dias eles iam tomar a outra boca. O Acássio acreditou e achou muito justo comemorar. Vieram várias prostitutas e foi uns três dias só de bebida, comida, pó e metelança. Único que não aproveitou foi o Zelão, porque pra ele o trabalho vinha antes.

- Entendi. O Zelão promoveu uma orgia pra desviar o foco dos bandidos. O Mário Morato armou o ataque e pegou os bandidos de calças curtas, literalmente.

- O doutor morô bem a coisa. E pra ajudar, o Zelão batizou a bebida. Fez um monte de bandido - tudo macaco velho! - de trouxa, de otário. Tudo rodado e caíram no "boa-noite-cinderela". O sujeito é ou num é um gênio?

- Realmente... Mas e aí?

- Aí, doutor? Aí que foi um massacre. O Mário Morato entrou com o pessoal lá e matou todo mundo. O Acássio tentou fugir pelos fundos, de cueca. O próprio Zelão atirou nele, na cabeça. E não parece que sentiu nenhum remorso, nem nada. Ele sempre foi PROFISSIONAL, entende? E pra que ter piedade de quem não era profissional como ele?

- E aí? O que aconteceu depois?

- Aconteceu o que tinha que acontecer: O Mário Morato ficou dono de toda a favela e o Zelão era o segundo homem mais poderoso do morro. Mais temido até do que o próprio Mário, porque todo mundo sabia que tinha sido obra dele a morte do Acássio e a tomada da boca.

- (Empolgado): E depois, seu Antônio? Como o Zelão passou de vice pra presidente da República da favela? Como ele tomou o Morro do Formiga?

- Tem mais fita aí pro seu gravador, doutor? Porque é uma outra estória comprida.

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Continua...


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2 Comments:

Blogger Pedro Henrique said...

Caracas, esse Zelão tem o feeling mesmo, como disse o repórti. Estrategista nato.

Tá vendo, demorei, mas apareci! rs
Da hora a continuação, mas demorô pra postar o resto!!!!

Abraço!

setembro 12, 2007 10:30 AM  
Anonymous Anônimo said...

Quanta imaginação hein!

setembro 19, 2007 1:28 AM  

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