Arev Zurc, a cidade encantada
Era uma terça-feira chuvosa quando fiz minhas malas e saí batendo a porta do apartamento. Eu ainda tinha na cara lavada aquela velha expressão de parvoíce que me acompanhava desde a infância. Aquela cara de lunático que, não obstante me tornasse o objeto de torturas e hostilidades entre meus pares infantis, trazia em si também as vantagens dos doces furtados à revelia de toda a gente e comidos escondidos nos cantos de quintais. Diante de toda a atrocidade que surgisse, eu era insuspeito. Via, com deleite, que pagavam por meus crimes pessoas que a vida havia privilegiado com bom porte anatômico, boa capacidade de subsistência física. Desde pequeno, eu já era um darwinista convicto.
Aos 16 anos, influenciado por leituras sacanas, decidi que deveria começar minha vida sexual, embora fosse ainda bastante feio e acanhado. Economizei o suficiente para ir a um puteiro. A coisa me parecia, de certa forma, inadequada. Não por quaisquer dilemas morais. Eu sempre estive acima dessa coisa de moral. Mas o estranhamento da situação se dava no fato de, hoje em dia, não existir mais essa prática de ir-se a um local específico para pagar por sexo. As putas estão por toda parte, das portas de colégio às saídas de igrejas evangélicas. Sentia-me então um seguidor de tradições antigas, superadas. Mas fui.
A puta se chamava Gisele. Me disse que é kardecista e acredita nessa coisa de espíritos. Eu disse a ela que vejo Deus como um administrador de empresas meio falido. Desatualizado. E que por isso o mundo está essa bosta. Mas esse diálogo foi curto, porque eu não gosto de conversar com estranhas, embora não me repugne transar com elas.
Essa iniciação as prazeres carnais não me tornou uma pessoa mais despojada. Pelo contrário, continuei o filho-da-puta mudo de sempre. Isso era péssimo. Algumas pessoas me julgavam um cara reflexivo e esperavam de mim, nas raras vezes em que minha boca fizesse menção de se abrir, sacadas geniais e soluções para os problemas em suspensão. Isso trazia em si sempre o risco da grande decepção, quando se notasse que o que eu dizia não passava do convencional, do lugar-comum, do óbvio. Por outro lado, havia a parcela de pessoas que me achava simplesmente um imbecil pusilânime, de onde nunca sairia nada. Com isso, passei a ser sistematicamente ignorado nos meus círculos profissionais. E as fritagens vinham logo, com pouco tempo de companhia.
No dia então em que Cecília terminou comigo por celular, resolvi que era hora de pegar a longa estrada. Que ficando onde estava eu não evitava me envolver em bobagens e em dramalhões de terceira categoria. Que não existia pessoa boa o suficiente que valesse o sacrifício de uma permanência forçada. Enfim, como no velho clichê, "aquilo tudo ficou pequeno demais pra mim e eu precisava alçar vôos mais altos".
Juntei na pasta os velhos jornais, revistas, todo o meu pequeno portifólio. Na mala, além das roupas, os livros mais importantes, que eram poucos. Os cadernos de poemas mal-escritos, que Cecília dizia serem uma grande bosta.
"Sejamos francos, Gabriel: seus amigos elogiam essas besteiras que você escreve porque são bajuladores ou ignorantes. Mas você e eu sabemos perfeitamente que isso não tem valor literário".
E realmente não tinha. Minha "obra poética" era digna de concursinho amador de poesia na faculdade. E de segundo prêmio, ainda por cima! Mas eu precisava desaforar a Cecília de todas as formas possíveis, e dar valor àquilo era uma delas.
E foi pensando em Cecília que subi no ônibus às 9:45 da manhã, com destino à uma cidade menor que eu já conhecia. Cochilei durante a segunda metade da viagem e tive um pesadelo atroz: uma mulher aparecia na minha frente segurando um bebê sem vida. Desesperadamente tentava me entregar "meu filho" e, diante da minha recusa, gritava que eu era um canalha.
"Na hora de me comer você esteve lá, não foi seu filho-da-puta?"
"..."
"Agora pega essa merda! Eu não quis! Você me obrigou! Você me fodeu!"
Acordei em seguida, embora menos sobressaltado do que se esperava. Fui ao banheiro do ônibus e já tinha esquecido esse sonho que, para mim, tinha pouca significação. De súbito, um mau pressentimento me tomou. Senti que ia morrer.
Então desci do ônibus e representei bem a cena final que havia sido escrita pra mim: atravessei a avenida sem olhar pra lado nenhum e senti apenas um baque forte, seguido de um apagão gradual, como se a iluminação natural fosse à base de um dimmer manipulado por alguém.
Meus pertences foram todos roubados. Os cadernos de poesia caíram nas mãos da criançada e as páginas parcas de bobagens em português lírico descreveram trajetórias curtas no ar sujo. Aviõezinhos de papel com alcance menos limitado que as palavras.
Aos 16 anos, influenciado por leituras sacanas, decidi que deveria começar minha vida sexual, embora fosse ainda bastante feio e acanhado. Economizei o suficiente para ir a um puteiro. A coisa me parecia, de certa forma, inadequada. Não por quaisquer dilemas morais. Eu sempre estive acima dessa coisa de moral. Mas o estranhamento da situação se dava no fato de, hoje em dia, não existir mais essa prática de ir-se a um local específico para pagar por sexo. As putas estão por toda parte, das portas de colégio às saídas de igrejas evangélicas. Sentia-me então um seguidor de tradições antigas, superadas. Mas fui.
A puta se chamava Gisele. Me disse que é kardecista e acredita nessa coisa de espíritos. Eu disse a ela que vejo Deus como um administrador de empresas meio falido. Desatualizado. E que por isso o mundo está essa bosta. Mas esse diálogo foi curto, porque eu não gosto de conversar com estranhas, embora não me repugne transar com elas.
Essa iniciação as prazeres carnais não me tornou uma pessoa mais despojada. Pelo contrário, continuei o filho-da-puta mudo de sempre. Isso era péssimo. Algumas pessoas me julgavam um cara reflexivo e esperavam de mim, nas raras vezes em que minha boca fizesse menção de se abrir, sacadas geniais e soluções para os problemas em suspensão. Isso trazia em si sempre o risco da grande decepção, quando se notasse que o que eu dizia não passava do convencional, do lugar-comum, do óbvio. Por outro lado, havia a parcela de pessoas que me achava simplesmente um imbecil pusilânime, de onde nunca sairia nada. Com isso, passei a ser sistematicamente ignorado nos meus círculos profissionais. E as fritagens vinham logo, com pouco tempo de companhia.
No dia então em que Cecília terminou comigo por celular, resolvi que era hora de pegar a longa estrada. Que ficando onde estava eu não evitava me envolver em bobagens e em dramalhões de terceira categoria. Que não existia pessoa boa o suficiente que valesse o sacrifício de uma permanência forçada. Enfim, como no velho clichê, "aquilo tudo ficou pequeno demais pra mim e eu precisava alçar vôos mais altos".
Juntei na pasta os velhos jornais, revistas, todo o meu pequeno portifólio. Na mala, além das roupas, os livros mais importantes, que eram poucos. Os cadernos de poemas mal-escritos, que Cecília dizia serem uma grande bosta.
"Sejamos francos, Gabriel: seus amigos elogiam essas besteiras que você escreve porque são bajuladores ou ignorantes. Mas você e eu sabemos perfeitamente que isso não tem valor literário".
E realmente não tinha. Minha "obra poética" era digna de concursinho amador de poesia na faculdade. E de segundo prêmio, ainda por cima! Mas eu precisava desaforar a Cecília de todas as formas possíveis, e dar valor àquilo era uma delas.
E foi pensando em Cecília que subi no ônibus às 9:45 da manhã, com destino à uma cidade menor que eu já conhecia. Cochilei durante a segunda metade da viagem e tive um pesadelo atroz: uma mulher aparecia na minha frente segurando um bebê sem vida. Desesperadamente tentava me entregar "meu filho" e, diante da minha recusa, gritava que eu era um canalha.
"Na hora de me comer você esteve lá, não foi seu filho-da-puta?"
"..."
"Agora pega essa merda! Eu não quis! Você me obrigou! Você me fodeu!"
Acordei em seguida, embora menos sobressaltado do que se esperava. Fui ao banheiro do ônibus e já tinha esquecido esse sonho que, para mim, tinha pouca significação. De súbito, um mau pressentimento me tomou. Senti que ia morrer.
Então desci do ônibus e representei bem a cena final que havia sido escrita pra mim: atravessei a avenida sem olhar pra lado nenhum e senti apenas um baque forte, seguido de um apagão gradual, como se a iluminação natural fosse à base de um dimmer manipulado por alguém.
Meus pertences foram todos roubados. Os cadernos de poesia caíram nas mãos da criançada e as páginas parcas de bobagens em português lírico descreveram trajetórias curtas no ar sujo. Aviõezinhos de papel com alcance menos limitado que as palavras.
1 Comments:
Well Deco, primeiro que nada como a vida real para que ela mereça um pouco de ficção.
Mas se o final não for um final feliz, que graça tem continuar escrevendo? Pelo menos deixe a história aberta - pelo menos é essa a minha idéia.
No mais, a história está muito bem escrita, preciso lhe dizer. Técnica impecável, bom argumento, coisa de primeira.
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