O mendigo precisa morrer (título provisório)
O médico encostou suavemente a porta do leito e caminhou em direção ao policial que o aguardava. Ambos fitaram-se durante alguns segundos, até que o policial quebrou o silêncio:
- Doutor, há por aqui um lugar onde possamos tomar um café? Tenho assuntos graves a tratar com o senhor.
Caminharam até o fim do corredor e entraram numa copa, de uso dos funcionários. O médico pediu que o tira fosse breve.
- Doutor, como o senhor sabe, o sujeito que está em coma é um mendigo que foi atropelado na Nove de Julho. Morava por ali há anos e há muito tempo já estava louco. Investigamos bastante, fizemos perguntas na região. Ninguém sabia de onde ele veio.
- Isso é bastante natural. - replicou o médico - O centro de São Paulo está repleto de pessoas assim. É uma situação lamentável, mas como médico de hospital público atendo casos como esse todos os dias...
O policial o interrompeu:
- Sim, doutor. Ocorre que esse mendigo é, digamos... especial.
- Especial?
- Sim. Esse mendigo não é propriamente um mendigo. Investigamos o passado dele. O homem chama-se Jamil Gonzaga, é contrabandista. Ou melhor, era. Acumulou muita grana e nunca conseguiram botar as mãos nele. Como ele comprovadamente matou um sujeito, meus colegas da Homicídios estavam loucos pra metê-lo no xadrez e botar a mão na grana. Um dinheiro lendário desde a década de 70. Uma pequena fortuna, doutor...
- Tenente, acho a estória muito interessante, mas não sei no que ela me diz respeito. Se o paciente se recuperar, eu o devolvo para suas mãos. No entanto, por enquanto, eu só estou fazendo o meu trabalho...
- Doutor, o senhor não me deixou terminar. - disse com ar complacente o policial, para retomar a narrativa em seguida - O que as circunstâncias nos fazem crer é que esse homem sofreu algum tipo de acidente em que perdeu a memória. Cogitamos a possibilidade de ele ter se passado por mendigo por todo esse tempo para não ser apanhado, mas isso é muito pouco provável. Ele sabia que um dia seria pego.
- Bastante interessante. E daí?
- Daí, doutor, que nós encontramos o dinheiro. Estava com um cupincha dele, escondido. O homem que guardava o dinheiro não existe mais. O problema é que o mendigo existe. E ele esqueceu tudo de sua vida pregressa, menos do dinheiro, que ele encumbiu o outro de guardar.
- Não entendo, tenente.
- Doutor, temos dois problemas. Um é que o homem passou muito tempo como mendigo, sem documentos, sem identificação. Nós sabemos que ele é Jamil Gonzaga, mas para provar isso está difícil. Além do que, os crimes dele prescreveram. Como a nossa lei é uma loucura, o que temos é um "mendigo" à beira da morte, sem herdeiros e podre de rico. Isso me cria um problema, pois não posso simplesmente confiscar o dinheiro, como planejei inicialmente. Estamos em luta aberta com o pessoal da Homicídios pra comandar o caso. Mas eles levam vantagem. Daí eu estar falando agora com o senhor.
O médico olhou com estranheza para aquele policial que lhe falava sem pudores sobre atos internos e nebulosos da polícia. O policial tomou um gole de café e continuou:
- Para mim, doutor, o ideal é que esse homem não volte do coma. Se ele morre hoje, morre nas mãos do meu pessoal, que foi quem chegou aqui primeiro. Dessa forma, não precisaríamos prestar contas a ninguém sobre as circunstâncias em que o capturamos. Oficialmente o homem morto seria apenas mais um indigente numa vala comum. O dinheiro nunca teria existido. Se a Polícia Federal ou a Homicídios se metem na jogada, eu estou fodido, doutor. Vou ter que fazer rateio com eles, vai ser um diabo. Por isso quero lhe fazer uma proposta...
- Proposta?
- O senhor desliga os aparelhos e assina um atestado de óbito. Nós lhe entregamos 300 mil reais. O senhor não deve ganhar isso num ano, mesmo dando plantão em 3 hospitais por dia.
Com efeito, o salário do médico era de miséria. E a situação que se oferecia era totalmente inusitada. Mas ele impôs à voz um pungente tom de dignidade para responder:
- Senhor, o Juramento de Hipócrates que fiz me impede de praticar a eutanásia.
O policial não pôde se conter. Seu riso estourou alto, tomando toda a extensão do corredor. O médico, acabrunhado, censurou-o lembrando de que estavam num hospital.
- Doutor, por favor, sem essa falsa ética. Vamos tratar a coisa de forma prática, sem romantismo. Sabemos perfeitamente que esse infeliz que está aos seus cuidados vai acabar apagando, mais cedo ou mais tarde. É um milagre que ainda esteja vivo. Podemos dizer então que foi a sorte, ou o destino - como queira! - que o fez chegar em suas mãos. Você tem um troféu no leito 206, sob seus cuidados. Aí há uma escolha a se fazer: ou o doutor colabora conosco e reverte isso a seu favor, ou dificulta o nosso trabalho. De um jeito ou de outro, nós conseguiremos o que queremos. Já o senhor, se ainda tiver sorte, na melhor das hipóteses, terá uma vida de inferno nesse hospital, na eventualidade de ser revelada a verdadeira identidade do paciente. Não vai ter um minuto de sossego: vai ser jornalista, policial, político, todo mundo aqui enchendo o seu saco. Quando tudo acabar, cê vai estar exausto e ainda vai estar pobre. Então, doutor, seja inteligente e faça o que lhe pedimos.
O médico refletiu por alguns segundos. Viu que não tinha escolha. Sentiu no tom de voz do policial uma ameaça velada. Temeu pelo seu emprego. Temeu por seu CRM, podiam até lhe aprontar alguma, aqueles macacos da polícia! E pior: um vento gelado lhe percorreu a espinha e num súbito ele temeu por sua vida.
- OK. Eu faço. Acompanhe-me.
Seguido pelo policial, aproximou-se do leito 206. O policial lhe fez sinal de que esperaria na porta, que agora era com ele. Entrou, aproximou-se de Jamil. Olhou-o por uns instantes e, como estava sozinho, permitiu-se falar, em tom de desabafo:
- Essa vida é uma merda. Eu estudei pra caralho pra ser um puto de um médico e nunca dei trambique em ninguém. Nunca emiti atestado falso, nunca trafiquei com medicamento nem apalpei bunda de paciente. Passei os anos na faculdade vendo os colegas roubando cadáver nos cemitérios e achava aquilo um nojo. Aí, veja só você - e falava com o paciente como se este estivesse realmente ouvindo - hoje me surge esse gorila aí e me trata de cima pra baixo, como se eu fosse um encanador e não um médico. E tu? Tu, meu amigo, viu abortarem mais cedo tua segunda chance. Como contrabandista eras um fudido. Como mendigo, ganhou tua liberdade. Mas, enfim... Vou te dar agora uma liberdade definitiva.
E desligou a respiração artificial. Sentiu-se um mérdico.
- Doutor, há por aqui um lugar onde possamos tomar um café? Tenho assuntos graves a tratar com o senhor.
Caminharam até o fim do corredor e entraram numa copa, de uso dos funcionários. O médico pediu que o tira fosse breve.
- Doutor, como o senhor sabe, o sujeito que está em coma é um mendigo que foi atropelado na Nove de Julho. Morava por ali há anos e há muito tempo já estava louco. Investigamos bastante, fizemos perguntas na região. Ninguém sabia de onde ele veio.
- Isso é bastante natural. - replicou o médico - O centro de São Paulo está repleto de pessoas assim. É uma situação lamentável, mas como médico de hospital público atendo casos como esse todos os dias...
O policial o interrompeu:
- Sim, doutor. Ocorre que esse mendigo é, digamos... especial.
- Especial?
- Sim. Esse mendigo não é propriamente um mendigo. Investigamos o passado dele. O homem chama-se Jamil Gonzaga, é contrabandista. Ou melhor, era. Acumulou muita grana e nunca conseguiram botar as mãos nele. Como ele comprovadamente matou um sujeito, meus colegas da Homicídios estavam loucos pra metê-lo no xadrez e botar a mão na grana. Um dinheiro lendário desde a década de 70. Uma pequena fortuna, doutor...
- Tenente, acho a estória muito interessante, mas não sei no que ela me diz respeito. Se o paciente se recuperar, eu o devolvo para suas mãos. No entanto, por enquanto, eu só estou fazendo o meu trabalho...
- Doutor, o senhor não me deixou terminar. - disse com ar complacente o policial, para retomar a narrativa em seguida - O que as circunstâncias nos fazem crer é que esse homem sofreu algum tipo de acidente em que perdeu a memória. Cogitamos a possibilidade de ele ter se passado por mendigo por todo esse tempo para não ser apanhado, mas isso é muito pouco provável. Ele sabia que um dia seria pego.
- Bastante interessante. E daí?
- Daí, doutor, que nós encontramos o dinheiro. Estava com um cupincha dele, escondido. O homem que guardava o dinheiro não existe mais. O problema é que o mendigo existe. E ele esqueceu tudo de sua vida pregressa, menos do dinheiro, que ele encumbiu o outro de guardar.
- Não entendo, tenente.
- Doutor, temos dois problemas. Um é que o homem passou muito tempo como mendigo, sem documentos, sem identificação. Nós sabemos que ele é Jamil Gonzaga, mas para provar isso está difícil. Além do que, os crimes dele prescreveram. Como a nossa lei é uma loucura, o que temos é um "mendigo" à beira da morte, sem herdeiros e podre de rico. Isso me cria um problema, pois não posso simplesmente confiscar o dinheiro, como planejei inicialmente. Estamos em luta aberta com o pessoal da Homicídios pra comandar o caso. Mas eles levam vantagem. Daí eu estar falando agora com o senhor.
O médico olhou com estranheza para aquele policial que lhe falava sem pudores sobre atos internos e nebulosos da polícia. O policial tomou um gole de café e continuou:
- Para mim, doutor, o ideal é que esse homem não volte do coma. Se ele morre hoje, morre nas mãos do meu pessoal, que foi quem chegou aqui primeiro. Dessa forma, não precisaríamos prestar contas a ninguém sobre as circunstâncias em que o capturamos. Oficialmente o homem morto seria apenas mais um indigente numa vala comum. O dinheiro nunca teria existido. Se a Polícia Federal ou a Homicídios se metem na jogada, eu estou fodido, doutor. Vou ter que fazer rateio com eles, vai ser um diabo. Por isso quero lhe fazer uma proposta...
- Proposta?
- O senhor desliga os aparelhos e assina um atestado de óbito. Nós lhe entregamos 300 mil reais. O senhor não deve ganhar isso num ano, mesmo dando plantão em 3 hospitais por dia.
Com efeito, o salário do médico era de miséria. E a situação que se oferecia era totalmente inusitada. Mas ele impôs à voz um pungente tom de dignidade para responder:
- Senhor, o Juramento de Hipócrates que fiz me impede de praticar a eutanásia.
O policial não pôde se conter. Seu riso estourou alto, tomando toda a extensão do corredor. O médico, acabrunhado, censurou-o lembrando de que estavam num hospital.
- Doutor, por favor, sem essa falsa ética. Vamos tratar a coisa de forma prática, sem romantismo. Sabemos perfeitamente que esse infeliz que está aos seus cuidados vai acabar apagando, mais cedo ou mais tarde. É um milagre que ainda esteja vivo. Podemos dizer então que foi a sorte, ou o destino - como queira! - que o fez chegar em suas mãos. Você tem um troféu no leito 206, sob seus cuidados. Aí há uma escolha a se fazer: ou o doutor colabora conosco e reverte isso a seu favor, ou dificulta o nosso trabalho. De um jeito ou de outro, nós conseguiremos o que queremos. Já o senhor, se ainda tiver sorte, na melhor das hipóteses, terá uma vida de inferno nesse hospital, na eventualidade de ser revelada a verdadeira identidade do paciente. Não vai ter um minuto de sossego: vai ser jornalista, policial, político, todo mundo aqui enchendo o seu saco. Quando tudo acabar, cê vai estar exausto e ainda vai estar pobre. Então, doutor, seja inteligente e faça o que lhe pedimos.
O médico refletiu por alguns segundos. Viu que não tinha escolha. Sentiu no tom de voz do policial uma ameaça velada. Temeu pelo seu emprego. Temeu por seu CRM, podiam até lhe aprontar alguma, aqueles macacos da polícia! E pior: um vento gelado lhe percorreu a espinha e num súbito ele temeu por sua vida.
- OK. Eu faço. Acompanhe-me.
Seguido pelo policial, aproximou-se do leito 206. O policial lhe fez sinal de que esperaria na porta, que agora era com ele. Entrou, aproximou-se de Jamil. Olhou-o por uns instantes e, como estava sozinho, permitiu-se falar, em tom de desabafo:
- Essa vida é uma merda. Eu estudei pra caralho pra ser um puto de um médico e nunca dei trambique em ninguém. Nunca emiti atestado falso, nunca trafiquei com medicamento nem apalpei bunda de paciente. Passei os anos na faculdade vendo os colegas roubando cadáver nos cemitérios e achava aquilo um nojo. Aí, veja só você - e falava com o paciente como se este estivesse realmente ouvindo - hoje me surge esse gorila aí e me trata de cima pra baixo, como se eu fosse um encanador e não um médico. E tu? Tu, meu amigo, viu abortarem mais cedo tua segunda chance. Como contrabandista eras um fudido. Como mendigo, ganhou tua liberdade. Mas, enfim... Vou te dar agora uma liberdade definitiva.
E desligou a respiração artificial. Sentiu-se um mérdico.
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