domingo, julho 23, 2006

Vãos

Um minuto de silêncio.



Faleceu neste sábado, 22 de julho de 2006, o grande ator e diretor Gianfrancesco Guarnieri. Fácil encontrar coisas sobre a vida e carreira dele na internet, nas Wikipédias da vida e sites especializados em TV, cinema e teatro. Você pode ler, entre outras coisas, sobre a sua incansável luta contra a ditadura e sobre os personagens que marcaram sua carreira.

Eu, porém, entre todos os seus personagens, vou me lembrar sempre dele como o Vô Orlando, o avô que todo moleque da minha idade queria ter. E acho que, de uma forma ou de outra, ele foi um pouco o avô dos moleques da minha geração, que cresceram assistindo "Mundo da Lua" e a programação infanto-juvenil da Cultura.


Obrigado, Vô Gianfrancesco. E bom descanso.


***


Acostumei-me a ver a vida por vãos. Quando pequeno, eram as grades do berço que restringiam a visão - ainda iniciante e encoberta - a listras de cor e movimento. Depois o crescimento natural e me vejo um menino acanhado tangendo com as mãos miúdas o muro do Jardim de Infância, uma construção formada por colunas quadradas de cimento branco na qual as brechas permitiam-me ver o mundo, um passar de pernas e carros pra lá e pra cá, sem fim. E então fui assim observando sempre que cada coisa tem o seu vão correspondente, a sua lacuna, a sua brecha.

Permiti então que minhas retinas capturassem a luz mesmo quando meu coração queria se entregar à escuridão solitária. Permiti que meu cérebro ecoasse idéias tolas, ainda que, na maioria das vezes, soubesse intimamente que não as levaria adiante. Permiti que a vida se conduzisse sozinha, como quando meu pai soltou a bicicleta e a deixou sob meu comando num voto de confiança e torcida. E a bicicleta se encaminhou sozinha alguns metros com seu condutor preso entre euforia e medo, para balançar depois e tombar sobre o cimento. Mas há que se levantar, montar de novo e partir, aceitando os tombos que a vida nos reserva e mesmo torcendo por eles. Pois só o tombo traz a cicatriz e só a cicatriz guarda em si a lembrança. Quem não se fere é um eterno virgem à espera da mercê da sorte.


A alegria efêmera de certas coisas pequenas aos poucos deu lugar, em meu coração, à esperança de coisas maiores e de projetos mais ousados. Adquiri um pouco de serenidade para aceitar o que não posso mudar. Receio estar tomando o caminho do conformismo, porém não descarto a idéia de voltar atrás se necessário for. Quando se erra não convém se lamentar. Vamos em frente e consertamos o que foi quebrado. Se o dano for irreversível (e quase nunca o é), encontra-se uma maneira de se penitenciar.


Pelos vãos dos muros, das cercas, das palavras, das linhas de um caderno, dos dedos e dos pensamentos, vejo minha vida toda aqui, curta e longa ao mesmo tempo. Diante do conceito relativo de liberdade, adapto minha mente á idéia que faço dela e tento adequar o mundo ao que acho justo. Às vezes o injusto se sobrepõe a tudo e sinto raiva por não poder mais simplesmente chorar para modificar. Mas disciplinei-me em relação aos meus sentimentos e não mais permitirei que eles escapem pelos vácuos da razão.


De Volta ao Começo

(Luiz Gonzaga Jr.)

E o menino
Com o brilho do sol na menina
Dos olhos
Sorri
E estende a mão
Entregando o seu coração
E eu entrego o meu coração
E eu entro na roda
E canto as antigas cantigas
De amigo e irmão
As canções de amanhecer
Lumiar a escuridão
E é como se eu despertasse
De um sonho
Que não me deixou viver
E a vida explodisse em meu peito
Com as cores que eu não sonhei
E é como se eu descobrisse
Que a força esteve o tempo todo
Em mim
E é como se então de repente
Eu chegasse
Ao fundo do fim
De volta ao começo
De volta ao começo.


(LP "De Volta Ao Começo", Luiz Gonzaga Jr., 1980. EMI Music Ltda.)

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Rafa não gosto de ser a primeira a comentar em seu blog porque sempre escrevo besteiras e piadinhas.
Realmente a gente sempre acaba adaptando nossa visão de mundo aquilo que estamos acostumados a ver, como no mito da caverna. A gente acha que aquilo é tudo e acabamos nem correndo atrás de várias coisas novas que poderiamos ver e ouvir. Acho que viajei um pouco agora, ou melhor, bastante...
Só acho que eu me disciplinei em relação a razão e não mais permitirei que ela escape pelos vácuos dos sentimentos. Eu acho.
Por isso que é foda comentar primeiro viu!

Po, também senti pela morte do Vô Orlando. Foi o que disse no blog do Pedro: Hoje se vão o Raul Cortez, o Gianfrancesco Guarnieri... Ai daqui alguns anos vão Paulo Vilhena, Dolabella, cigano Igos. Será que eles terão a mesma moral? Acho que não hein.
E a Dercy ainda vai enterrar um monte... rs

julho 26, 2006 12:13 AM  
Anonymous Anônimo said...

Liliane: faz um comentário filosófico desses e ainda diz que tem vergonha de comentar primeiro porque só diz besteira... vai entender...

ENQUANTO OS DOIS ÚLTIMOS POSTS NÃO FOREM DEVIDAMENTE COMENTADOS, NÃO POSTO MAIS NADA.

ASS: A Moderação

julho 27, 2006 4:59 AM  
Anonymous Anônimo said...

Pô, eu comentei nos 2 últimos posts, então meu comentários são indevidos???

julho 27, 2006 8:49 AM  

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