Nosso tirinho
Estamos montando apartamento. Eu não gosto dela, mas o sexo é muito bom. Ou quase. Estou num momento místico da minha vida. Nada mais me aporrinha, nem mesmo o calor de 38 graus.
Estamos focando em nossas carreiras, nesse momento. Ela acha a maior brisa eu levar trabalho pra casa, eu digo que ela está de onda. Meu pai era malufista, o dela amava o Brizola.
A pele dela é branca, de pó-de-arroz. Diz que a babá encharcava a bunda dela de talco, mas ela às vezes acha que podia ser pó royal. Cal virgem, gesso em pó, giz de escola. Coço muito o nariz, enfio o dedo lá no fundo. Minha rinite tá atacada. "Você não tem nojo, amor?"/ "Não, vem cá pra eu te espremer os cravos". Nossa vida quotidiana é tão gozadinha...
***
Belo dia encontro ela empapuçada, suada, amassada. Como se tivesse vindo num ônibus lotado. Acordou de um sonho ruim, na certa. Eu tiro o paletó, apanho uma lata de Coca em cima da geladeira. Levei um copo, ela queria canudo. Sou muito distraído.
As coisas iam bem, mas a gilete sumiu e fiquei uma semana sem fazer a barba. De barba malfeita, dispensei também o espelhinho. O fato é que nem por isso deixei de cuidar da aparência. Nós dois, todos os dias, malhávamos. Malhávamos muito, malhávamos bem, malhávamos cada vez melhor. Nossa vida era uma malhação só.
E então eu acreditava que nosso relacionamento podia dar certo. Eu era médico e monstro, padre e cafetão dela. Quando a gente se perdia um no outro, nos achávamos nas trilhas de luz branca, fachos puríssimos de um claro brilhante. Havia um desequilíbrio, uma dependência. Era tóxico o nosso gostar. Mas estávamos sempre elétricos, sempre bem, sempre a postos para atender o telefone, pagar o entregador ou transar na escada de emergência gemendo alto pra escandalizar os caretas do prédio. A gente tinha muita disposição. E eu não achei que um dia eu fosse dormir e nunca mais acordar daquele pesadelo, daquela bad trip que se apossou de mim.
Uma rebordosa violenta, uma briga, lítigio bobo por causa de 200 gramas de mussarela. Dona Benta, a vizinha, ouviu o barulho e chamou a polícia. O delegado, antes de me algemar, perguntou o que eu tinha feito. Eu não tinha feito nada. Apenas percebi que havia sangue no lençol, uma arma na minha mão e pólvora nos meus dedos. Ela parecia enfim descansar, o rosto tranqüilo, a boca vermelha como uma taça de Cynar.
Nunca mais. Nunca mais comi coco ralado.
2 Comments:
Ei, Deco, participei do XI Prêmio Ideal Clube de Literatura, aqui em Fortaleza, e fiquei em 8ª colocação, com o conto QUANDO MADALENA CHAMA. De lá, fui comemorar em uma calourada da UECE... Cara, lá tava mais para "FUMEC" que pra "UECE"... huahuahua! Forte abraço!
Eu si divirto com seus contos meio surreais...
Me lembram um pouco aquele livro "Estorvo".
Beijos
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