sábado, julho 14, 2007

Por um maço de cigarros menos ordinário

Recibo do motel no meio daquele livro. Pontada cruel de lembrança.



Decidi que era hora de parar com a limpeza das velhas tralhas. O pó já tinha deixado minha rinite à toda. Vesti o casaco e saí, com pouco dinheiro no bolso. Pedi um pingado na padaria, na TV passava um jogo de futebol. O cara deu um carrinho violento no adversário e foi expulso. Um velho ficou puto, começou a gritar no bar. De repente outro se levantou do balcão, partiu pra cima dele, estourou-lhe uma garrafa de cerveja na cabeça. Tudo aconteceu diante dos meus olhos, mas eu sentia os acontecimentos como se estivesse vendo um filme. Os amigos do agredido partiram pra cima do agressor. De repente, percebi que estava no meio da coisa, de pé no centro da padaria, no olho do furacão. Alguém chegou furioso e me deu um soco na boca do estômago. Depois um pontapé nos fundilhos. Finalmente um soco na cabeça. Senti a iluminação diminuindo, três, dois, um. Preto.



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Deixei de acreditar em qualquer coisa. Ceticismo contra a parede de sujeira que é a mente humana. Esvaziei uma garrafa de vodca com sprite pra tomar coragem de fazer o que era necessário. Mas como ia ser? Barulhento? Com sangue por todos os lados? Ou uma morte limpa e sem ruídos?



Pensei em enforcamento. Mas daria muito trabalho. Primeiro porque não teria uma corda à mão e seria necessário improvisar. Além disso, aquele lustre não ia aguentar o peso do corpo, ia ceder e eu ia me ralar todo.



Fui à cozinha. Abri a gaveta de talheres. Peguei a faca mais afiada, olhei-a por alguns instantes. Logo desisti da idéia. "Com faca vai doer pra caralho".



Podia pular pela janela, mas sempre achei escrotos suicidas que causam transtornos à rotina dos outros. Ninguém tem que se foder com as minhas decisões.



O que fazer? O que fazer? Sentei-me no chão e olhei para o relógio. Não queria pensar muito. Tinha medo de fraquejar.



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O sol trespassou o vidro da janela e veio direto na minha cara, me acordando. Era domingo e eu estava puto da vida. O hematoma na minha cabeça latejava. Levantei-me, joguei uma água no rosto. Dor de cabeça homérica de ressaca. Tocou a campainha. Era ela.



"Vim te devolver suas coisas".



Entrou. Botou reparo na zona em que estava o apartamento.



"Não tive tempo de arrumar", respondi.



Foi à cozinha, disse que ia fazer um almoço. Ia me opor, mas não tinha ânimo mais. Comemos.



"Ainda podemos ser amigos".



"Amigo de cu é rola".



"Então é assim que vai ser? Você não vai aceitar numa boa?"



Olhei bem pra cara dela. A vaca queria minha amizade pra que? Pra me contar as transas que ia ter com outros caras? Imaginei-a pagando um boquete pro dono da padaria. Um sorriso maldoso passou pela minha expressão. Ia pedir pra ela me chupar de novo, pela última vez. Achei indigno. Resolvi fazer outra coisa.



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A vizinha ouviu os gritos e chamou a polícia. Eles me levaram às três da tarde do domingo. Um dos policiais me deu um soco exatamente no mesmo lugar do abdôme onde eu tinha sido ferido na briga da padaria. Doeu pra porra.



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sábado, julho 07, 2007

Quem é que sobe?

Quando soube que o irmão estava metido no rolo, veio voando de Milão. Subiu o morro e foi direto falar com Zelão. O fato de ser uma celebridade não o eximia de ser revistado pelos homens na entrada do QG, como era praxe pela "Lei de Segurança da Favela do Formiga", instituída pelo mandatário-geral desde o dia da retomada, naquele distante agosto sangrento.

"Qualé, Marquinho? Tu por aqui?"

"Porra, Zelão. Meu irmão não, porra! Me diz quanto tu quer e a gente resolve tudo".

Zelão parecia satisfeito com o reencontro e não pretendia permitir clima tenso naquele momento.

"Caveira, traz uma coca aí pro Marco. Ia oferecer uma caninha pra ele, mas 'atreta' não tem que beber. Senta aí, Marco. Como é que tá lá na Itália? Tomando muita porrada de beque?"

"Tá tudo indo".

Encarou firmemente o traficante e prosseguiu, com voz tensa:

"Zelão, tu pra mim sempre foi que nem um irmão. Quem me deu a primeira chuteira foi você. Quem me arrumou a vaga no júnior do Madureira foi tu também. Eu te devo muito, parceiro. Não fosse tu, eu tava no tráfico até hoje".

"Tava nada, Marquinho. Teu negócio é meter bola na rede e não bala no coco de comédia. Eu apenas dei um empurrãozinho na tua vocação. Mas, falando do que interessa: sei porque cê veio aqui. Eu já te digo de cara: só não matei ainda aquele cu-de-burro do teu irmão por consideração a você".

"Meu irmão é gente boa, Zé. Cê tá ligado".

"A única coisa que tô ligado, meu bróder, é que teu irmão montou na tua fama e me desacatou geral aqui na quebrada. Folgou pra caralho, não teve consideração comigo. Eu soube até que ele andou rindo de mim nas minhas costa. Marquinho, teu irmão é um zé-ruela. E tu é um cara da mídia, famosão. Qualquer dia esse trouxa ainda vai te fuder!"

Marquinho sabia que o irmão era, com efeito, um idiota. Mas ainda assim, era seu irmão mais velho. E era quem "cuidava" da mãe, que nem o próprio Deus encarnado convenceria a ir passar frio na Itália e morar longe do morro onde nasceu. Era preciso então acalmar Zelão, que Marquinho sabia capaz de qualquer coisa quando contrariado. Conversaram durante uma hora. Marquinho saiu de lá sem a certeza de que Zelão não mataria Vando. Voltaria ao QG na véspera da viagem de volta à Itália, no entanto.

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A mãe saíra pra ir até a venda e ele aproveitou pra tirar um cochilo no sofá. O barraco era o mesmo de sua infância, mas agora estava todo mobiliado. Um pouco de conforto pra compensar a teimosia de Dona Nita, que não aceitara nem mesmo morar numa casa fora da favela. Acordou de repente e viu Sandrinha parada na porta, olhando-o com curiosidade.

"Que que foi? Acha bonito olhar homem dormindo?"

"Acho. Você tava tão tranquilo, tão desprotegido".

Ficaram um tempo calados, admirando-se mutuamente. Um turbilhão de lembranças explodiu na cabeça do atacante. Ele ia tomar a iniciativa, mas ela se adiantou. Beijaram-se.

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"Sabe Marco, eu juntei todas as matérias que saíram com você nos jornais. Só fico triste que não dá pra ver seus jogos por aqui..."

Ele olhou enternecido para o rosto de Sandra, acariciou levemente o pescoço da morena, em seguida o seio esquerdo. Depois de tantos meses transando maquinalmente com prostitutas e interesseiras, havia esquecido de como era bom aquele sexo simples e recíproco.

"Futebol italiano é uma merda. Ano que vem vou tentar uma transferência pra Espanha. Aí eu mando te buscar".

"Não mente pra mim não. Eu sei que tu agora vive em outro mundo. Pra mim o que importa é que você tá aqui comigo agora".

Ele não pôde evitar um sorriso de admiração, embora sentisse no olhar de Sandrinha uma ponta de tristeza, de decepção. Ela esperava mais dele. Sempre esperou. Mas agora era tarde. Eles realmente não pertenciam mais ao mesmo mundo.

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"Qualé, Zelão? Você me prometeu que não ia matar! Faz isso não, porra!"

Vando estava ajoelhado no chão, com as mãos amarradas às costas. Em volta dele estavam Piolhinho, Caveira, Pedrão "PC" Contador, Primo Rico, Zeca Vinte e Dois e Manequinho. Todos apontando pistolas pra cabeça do condenado, esperando apenas ordem do chefe pra atirar. Zelão valorizava ao máximo aquele momento. Deixou que Marco implorasse, prometesse dinheiro, chorasse.

"Desculpa aí, Marquinho. Se fosse só por você, eu deixaria esse viado vivo. Mas não posso passar a nossa amizade na frente dos interesses da minha firma. Tu é um cara esperto, já assinou contrato com time grande e sabe que cada um tem que cuidar do que é melhor pra sua carreira. Teu irmão prejudicou minha moral. Prejudicando minha moral, ele prejudicou meus negócio, tá ligado? Então não tem mais jeito".

"Zelão, por tudo que é mais sagrado! Não faz isso, nêgo véio! Eu levo o Vando embora daqui, ele nunca mais vai te encher o saco. Mas não mata não, bróder. Meu pai morreu há tempo, minha mãe não pode ficar desamparada".

Zelão ficou calado por um instante. Depois caminhou na direção de Vando e com um puxão colocou-o de pé. Notou que o homem estava duplamente envergonhado. Primeiro porque teve que passar pela humilhação de ter sua vida salva pelo irmão mais novo, mais rico e importante do que ele. E depois porque era duro aguentar os risos dos bandidos à sua volta, que não se contiveram ao ver a pequena poça de urina no chão. Foi colocado pra fora do QG à pontapés.

"Marco, faz um favor pra mim: volta pra Itália e não aparece mais aqui. Teu lugar é nas Oropa mermo. De preferência leva esse cagão e a Dona Nita junto contigo. Tu é um moleque sangue-bom, mas o morro não é mais pra tu".

Marquinho saiu sem nada dizer. No dia seguinte arrumou as malas pra ir embora. A mãe, como antes, recusou-se firmemente a ir com ele. "Nasci aqui e vou morrer aqui". Vando também não quis ir. Era orgulhoso. Além disso, ia juntar um grupo, pegar Zelão na espreita, foder com ele. Ia se vingar e provar que não era só o irmão da porra do Marquinho. Maquinou secretamente seu plano, mas vendo o esforço do irmão mais novo, achou-se na obrigação de, pelo menos, dizer antes que o caçula cruzasse a porta:

"Pirralho... Valeu aí!"

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Saiu suado, cansado. Respondeu as perguntas dos repórteres que o cercaram com o pouco que sabia de italiano. O time havia vencido e ele saía de campo sob ovação geral da torcida. Já se via eleito o melhor jogador da temporada na Itália. Imaginava-se transferido pra um Real Madri, pra um Barcelona. Ou pelo menos para o Milan. Daí para ser eleito melhor jogador do mundo seria um pulo. A Copa do Mundo também está aí. Que fase ótima, meu Deus!

De repente mudou de expressão. Lembrou-se de Sandrinha. Do cheiro fresco do cabelo molhado dela. Sentiu saudade. Pensou realmente em mandar buscá-la. Um assessor aproximou-se e tirou-lhe de seus devaneios. Do Brasil vinha a notícia, estampada em todos os jornais, de que seu irmão morrera naquela manhã. "Assassinado por traficantes", dizia um deles.

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Um ano e meio depois. Sandrinha. O rosto cheio de hematomas. Assistindo o jogo da Copa do Mundo. Narração da TV:

"Marquinho cerca, sai na marcação. Olha o atacante tentando passar. Ih, o Marquinho ficou no chão! Avança o jogador da França, linha de fundo, cruzamento, quem é que sobe? Gol. Da França".