quinta-feira, julho 16, 2009

Pela bola sete*

O Bereco era do devagar. Não queria nada com o batente. Seu negócio era sinuca. E nisso ele era cobra. De taco na mão fazia embaixada. Conhecia os trambiques do jogo e sabia como entrutar o parceiro. Então estava sempre com a bufunfa em cima. Sabe como é o lance. Sempre tem um panaca pra desconhecer o nome do mandarim. E o Bereco ajudava. Se vestia como um Zé Mané qualquer. Neca de beca tranchana. Isso espanta o loque. O babado era se fazer de besta. Tirar onda de operário trouxa. Desses que dá um duro do cacete de sol a sol, se forra de prato feito, e na folga vai fazer marola em boteco. Daí sempre tem um malandrinho pra tomar os pichulés do otário. Se fazer passar por coió era o grande trambique do Bereco. Com essas e outras ele engrupia até muito vagau escolado.

Até no Bar Seleto de São Vicente, ponto certo dos grandes tacos do mundo, o Bereco deu esse deschavo. E grudou. Pensaram que ele era pão-ganho e ele tomou o sonante dos pintas. E assim o Bereco ia remando seu barco em maré mansa.

Mas é como diz o Mestre Zagaia:

- Um dia é da caça, outro do caçador.

E se o Zagaia diz, é que é. Todo o mundo sabe disso. Porém, acontece que, como não dá pro nego tocar fogo no mar pra comer peixe frito, tem que botar pra quebrar. E o Bereco ia firme. Só ganhando. Um pato atrás do outro era depenado. Sem dó. Que nas paqueras da vida é cada um pra si. Mas chegou a virada.

Era fim de mês. Dia de pagamento da Refinaria de Petróleo. O Bereco que estava por dentro se picou pra Cubatão. Se plantou num salão dos bordejos da refinaria e ficou na moita. Logo foi baixando a freguesia. Tudo de capacete de lata. A batota estava contentona de envelope no churro. E o Bereco só espiando o lance. De vez em quando tirava um paco de nota pra pagar uma Coca-Cola. Era a milonga. Logo um capacete de lata mais afobado se assanhou com o dinheiro do majura. Sentiu a muquinha pega e quis tomar. Mediu o Bereco e foi no xaveco do pinta. O Capacete de Lata tinha um joguinho enganador. Desses que é bom em mesa de sindicato. Mas levou fé em si e nenhuma no Bereco. Encarnou no moço:

— Como é, parceiro? Quer fazer um joguinho?

O Bereco não deu pala:

— Jogo nada.

O Capacete de Lata cercou:

— A leite de pato.

O Bereco deixou andar:

— Se é de brinquedo, vamos lá.

E começou o jogo. Bereco sentiu o parceiro e tirou de letra. O Capacete não sabia nada. O Bereco deu o engano. Os primeiros dez mirréis, os segundos e os terceiros o Bereco empurrou pro trouxa. E se fez de bronqueado. Partiu pros vinte, pros cinqüenta e pros cem mil. O Capacete de Lata estava se deitando. Era seu bilhete premiado. Com o dinheiro que ganhou do Bereco, o seu ordenado já tinha um milheiro no porão. Daí o Bereco selou:

— Ou tudo ou nada.

O Capacete de Lata nem balançou.

— Um milhão na caçapa.

Todo o mundo de botuca ligada na mesa. O Capacete saiu pela cinco. Errou. O Bereco se tocou que o xereta estava nervoso. Teve que maneirar. Cozinhar o galo. Senão ia ficar escrachado o perereco. Errou na cinco que estava cai não cai. E o joguinho ficou de duas muquiranas. Só na bola da mesa. O Bereco não embocava. Só colhia as mancadas do Capacete de Lata. Se o bruto batia uma três, o Bereco fingia que era sem querer, e deixava uma sinuca de bico pro inimigo. E na catimba do Bereco e no virador do Capacete de Lata o jogo foi comprido pacas. Os sapos nem chiavam. Seguravam as pontas. Era tudo torcedor do Capacete de Lata. Trabalhadores da refinaria de petróleo de Cubatão. Mas o Bereco nem estava aí. Já contava com o dinheiro da caçapa.

Aí chegaram na bola sete. Só a sete estava na mesa. E o jogo estava por ela. O Bereco folgado, muito à vontade encostou a negra na parede. O capacete de lata tremia, suava. Estava com o motor batendo acelerado. Fez mira. Começou a pensar que tinha quatro filhotes no seu chatô, aluguel de casa, rango, escola, remédio e os cambaus. Pensou no que ia dizer pra mulher. Com a cabeça cheia de minhocas deu na cara da bola. Uma chapada. A negra rolou para um lado, a branca pra outro. O Capacete de Lata sentiu um alívio. Pelo menos acertou na bola. Mas o recreio durou pouco. Quando as bolas pararam a sete estava na boca da botija. Pedindo pra cair. E a branca no meio da mesa. Ninguém por mais cego que fosse errava aquela. O Bereco sorriu. Deu a volta na mesa devagar. Bem devagarinho. Enrustido, sem dar bandeira ia gozando as fuças do otário. O Capacete de Lata só faltava abrir o buê. Deu a volta e ficou atrás da caçapa em que a bola ia cair. O Bereco deu uma dica de leve.

— Vai secar?

O Capacete de Lata quis falar mas não deu. Se engasgou. O Bereco não se flagrou no olhar do panaca. Se tivesse visto as bolas de sangue nas botucas do Capacete de Lata ia ficar cabreiro. Não viu e fez a presepada. Passou giz no taco com calma. Se ajeitou na mesa, com calma. Aí levantou a mira. Viu a bola branca, a sete, a caçapa, atrás da caçapa um revólver quarenta e cinco, atrás do revólver o Capacete de Lata. O Bereco quis saber:

— Que é isso, meu compadre?

O Capacete de Lata espumou, babou e resmungou.

— Se meter essa sete, eu te mato.

O Bereco viu logo que era jura. Se fechou em copa. Deu na bola de esguelha, o taco espirrou. Relou na sete e as duas ficaram na berba da caçapa. Coladas. O Bereco fingiu que não havia nada.

— Ficou pra você, compadre.

O Capacete de Lata guardou o revólver treta, a raiva e tudo. Foi de cabeça. Deu no taco e bimba. A branca e a negra mergulharam juntas. O Bereco só ficou olhando. As lágrimas correram nos olhos do Capacete de Lata. Estava tão embaixo que não dava pra pegar a arma e aprontar o salseiro. Só deu um lamento.

— Tenho quatro bacuris.

O Bereco fez que não escutou. Recolheu a grana e saiu de fininho. O Capacete de Lata saiu logo atrás. Ninguém se mexeu. Passou um tempo e veio o estouro. Meio mundo foi ver as rebarbas. No meio da rua o Capacete de Lata estava estarrado. Tinha o revólver na mão e uma bala na orelha. Se acabou. O Bereco só teve pena de nunca mais poder dar grupo em trouxa do Cubatão. Perdeu um grande pesqueiro.
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*Pela bola sete, Plínio Marcos. Crônica publicada em Última Hora, 12/01/1969

quarta-feira, julho 01, 2009

Morder a vida com todos os dentes

Quando meu bisavô paterno, o velho Nicolás, resolveu sair de Granada, Espanha, se enfiar um navio e vir pra cá, no começo do século XX, ninguém disse pra ele que seria fácil. Mas ele - sabe Deus por quê! - resolveu fazer isso, e veio, e se estabeleceu como funcionário da prefeitura de São Paulo, e teve uma penca de filhos, supostas amantes (atraídas pelo charme de um espanholzão forte e charmoso) e um enfarte quando ainda não podia ser chamado de velho. Deixou pro meu avô, como herança, o próprio nome que ganhou quando se naturalizou brasileiro, Nicolau Gimenez Garcia, sendo meu avô o Gimenez Garcia Filho.

Quando meu avô, o velho Seu Nicola, começou a trabalhar na prefeitura, ainda moleque, como aprendiz, tendo que subir num caixotinho de madeira pra alcançar a bancada, ninguém disse pra ele que a vida era fácil. E realmente, a vida não é fácil pra um cara que tem três filhos pra criar e um temperamento difícil. Mas porra, meu avô até que se saiu bem. Hoje assiste os westerns dele na TV à cabo, lê o jornal, não bebe mais, não fuma mais e até o refrigerante cortou. É bem verdade que tem uma penca de manias, que estão sendo transmitidas de geração pra geração (não, ainda não chegou a hora de falar do meu pai), mas é um cidadão-padrão, casado há muitas décadas com a minha vó, uma esposa à moda antiga, também filha de espanhóis, faladeira, sempre querendo agradar e às vezes não agradando. Pra ela também ninguém deve ter dito que a vida era fácil.

Quando meu pai teve que largar o samba pra correr atrás do meu pão, ele deve ter pensado "é, nêgo. A vida não é fácil". Minha mãe, então... Tinha acabado de perder o pai, sustentava a casa e engravidou de um namorado com o qual ela não tinha planos de se casar. E se casou. E aí foi o mundo nas costas dela, como é até hoje. Mãe, marido e filhos. Mas ela tá aí na luta. Nunca me disse que a vida é fácil, mas faz de tudo pra torná-la fácil pra mim. Ela e meu pai, aliás. Nunca ouvi, deles, palavras de desconsolo. Já vi os dois em situação difícil, mas eles sempre me incentivaram a seguir caminhando.

A vida não foi fácil pro meu avô materno, alcoolatra, trabalhador, homem conhecido pela gentileza e educação quando não estava de porre. Não foi fácil pra minha vó materna, que fazia faxina pra fora, que criou a filha com dificuldade, que se desesperou com o vício do marido e que depois, quando ele se foi e os netos vieram, os criou pros pais, meus pais, poderem trabalhar fora.

A vida não é fácil pra dona Maria, copeira do hospital Pérola Byington, não é fácil pro Severino, porteiro de prédio chique em Higienópolis, nem pro Ademir, motorista da linha Jd. Fontalis-Barra Funda. No entanto, cada um do seu jeito, eles estão tentando. Tentando morder a vida com todos os dentes, na fúria de quem quer arrancar pedaço. O mendigo Zé Sujo que, quando deixam, toma banho no chafariz do Largo da Memória, não tem dentes, mas morde a vida com as gengivas, e morde de tal jeito que dilacera, e ele ri, ele ri desenfreado, sem culpa, sem medo, porque a vida é isso aí mesmo.

E eu, que não vim de outro país, que não lavo casa dos outros, que não tenho vício nem doença, que comecei a trabalhar com 23 anos de idade e na profissão que eu escolhi pra mim, eu que tenho tudo que meus pais puderam dar, além de não ser (muito) feio nem (muito) burro, eu fico nessa de olhar a vida, com a boca cheia de saliva, e não morder. Esperando o prato esfriar, o garçom passar, a fome chegar. Esperando? O amor? Que amor? Petiscando sonhos, pensamentos fixos, bobocas, que me fazem perder um tempo do cacete. Que marola é essa? Quando foi que eu fiquei desse jeito? Esperando cair migalha da mesa? Sendo que na minha frente tem de tudo, do bom e do melhor?

Sabe qual é, meu irmão? Cansei dessa pataquada toda. Afiei meus caninos e agora sim, com meus trinta e poucos dentes, meus vinte e poucos anos, saúde de ferro e nervos de aço, eu decidi que vou pra luta. Foda-se quem for contra. Tem muita gente, viva e morta, que eu não posso mais desapontar.