sexta-feira, outubro 31, 2008

Ela

Ela é tão distraída que não sabe que o mundo gira em torno dela.
Ela é sincera. Se está brava, está mesmo. Se está feliz, não há como duvidar.
Ela consegue me desarmar fácil. Não consigo ter raiva dela. Nunca. Quando tenho raiva dela, fico com raiva da raiva e a raiva passa.
Por ela, transitei entre extremos. Fui de mesquinho a altruísta. De suicida a pastor. Num dia parei estatelado diante do tsunami do mundo e no outro ri sozinho e eufórico entre prédios cinzentos e sujos.
Graças a ela, eu descobri que sou um homem bom, e que sou capaz de amar desinteressadamente.
Não estou propriamente feliz. Nem triste. Estou tranqüilo, torcendo para que um dia possa gostar de alguém da mesma forma como gosto dela.

quinta-feira, outubro 30, 2008

A maconha e a guerra civil

Esta noite:

Primeiro estava em casa e tinha um rolado uma festa muita estranha, com gente esquisita, como diria aquele finado cantor. Meu pai botou todo mundo pra fora e fiquei sozinho, quando vi que sobre a mesa havia vários cigarros estranhos, compridos e envoltos numa espécie de papel crepon branco. Na verdade, eram guimbas, mas ao lado havia um maço, como se tivessem industrializado a maconha (lembra dos cigarrinhos Marley's?). Estando sozinho e acometido por uma surpreendente fissura, acendi unzinho e pus-me a fumar. Deleitava-me com aquele baseado quando pintou sujeira. Era meu pai voltando para o recinto. Só deu tempo de sumir com o baseado que estava aceso na minha mão, mas os que estavam sobre a mesa lá permaneceram. Rezei mentalmente para que ninguém visse, meu pai passou os olhos por tudo e não disse nada. Ou fingiu que não viu, ou não ligou, ou não se tocou que aquilo era o que era. Também não viu que eu estava sob efeito e aí eu fiquei meio frustrado porque não estava mesmo sentindo nenhum efeito da erva. Pensei que ou aquela erva não era erva, ou era de má qualidade, ou não deu tempo de fumar a quantidade necessária. Esperei meu pai sair para fumar escondido, mas aí cortou para...

... o terminal de ônibus em Santana. Havia virado uma praça de guerra. De um lado, a galera que queria prestar FFLCH. Do outro, os "biólogos". Quem era de um lado, não podia circular pelo outro. Eu estava do lado dos biólogos e resolvi sair dali o mais rápido possível. O lado dos biólogos era aquele onde fica o Bingo Cruzeiro do Sul. Então segui pela rua que fica entre o bingo e o terminal, andei bem um quilômetro com um grupo de refugiados. Quando estávamos adiantados pela rua, o grupo de refugiados se despediu de mim e fiquei sozinho. Mas estava muito tranqüilo, tanto que parei para olhar as capas de revistas numa banca de jornais. Vinha passando um ônibus na rua, subi nele achando que me levaria pra casa. Mas ele desembarcou todo mundo novamente no terminal, mas desta vez no lado do "Esfiha Chic", onde estava a galera da FFLCH. Acabei me ambientando com o pessoal, principalmente depois que encontrei Hildeberto, um cara que estudou comigo na Unesp. Ele me apresentou para a Viviane Pasmanter, que estava lá muito triste, porque fazia Letras mas queria mesmo era fazer Biologia.

A guerra é uma coisa muito triste, já diria alguém. E nos deixa marcas profundas. Ainda bem que minha vó me acordou antes de alguma coisa me atingir.

sábado, outubro 25, 2008

Nosso tirinho

Estamos montando apartamento. Eu não gosto dela, mas o sexo é muito bom. Ou quase. Estou num momento místico da minha vida. Nada mais me aporrinha, nem mesmo o calor de 38 graus.
Estamos focando em nossas carreiras, nesse momento. Ela acha a maior brisa eu levar trabalho pra casa, eu digo que ela está de onda. Meu pai era malufista, o dela amava o Brizola.

A pele dela é branca, de pó-de-arroz. Diz que a babá encharcava a bunda dela de talco, mas ela às vezes acha que podia ser pó royal. Cal virgem, gesso em pó, giz de escola. Coço muito o nariz, enfio o dedo lá no fundo. Minha rinite tá atacada. "Você não tem nojo, amor?"/ "Não, vem cá pra eu te espremer os cravos". Nossa vida quotidiana é tão gozadinha...

***

Belo dia encontro ela empapuçada, suada, amassada. Como se tivesse vindo num ônibus lotado. Acordou de um sonho ruim, na certa. Eu tiro o paletó, apanho uma lata de Coca em cima da geladeira. Levei um copo, ela queria canudo. Sou muito distraído.

As coisas iam bem, mas a gilete sumiu e fiquei uma semana sem fazer a barba. De barba malfeita, dispensei também o espelhinho. O fato é que nem por isso deixei de cuidar da aparência. Nós dois, todos os dias, malhávamos. Malhávamos muito, malhávamos bem, malhávamos cada vez melhor. Nossa vida era uma malhação só.

E então eu acreditava que nosso relacionamento podia dar certo. Eu era médico e monstro, padre e cafetão dela. Quando a gente se perdia um no outro, nos achávamos nas trilhas de luz branca, fachos puríssimos de um claro brilhante. Havia um desequilíbrio, uma dependência. Era tóxico o nosso gostar. Mas estávamos sempre elétricos, sempre bem, sempre a postos para atender o telefone, pagar o entregador ou transar na escada de emergência gemendo alto pra escandalizar os caretas do prédio. A gente tinha muita disposição. E eu não achei que um dia eu fosse dormir e nunca mais acordar daquele pesadelo, daquela bad trip que se apossou de mim.

Uma rebordosa violenta, uma briga, lítigio bobo por causa de 200 gramas de mussarela. Dona Benta, a vizinha, ouviu o barulho e chamou a polícia. O delegado, antes de me algemar, perguntou o que eu tinha feito. Eu não tinha feito nada. Apenas percebi que havia sangue no lençol, uma arma na minha mão e pólvora nos meus dedos. Ela parecia enfim descansar, o rosto tranqüilo, a boca vermelha como uma taça de Cynar.

Nunca mais. Nunca mais comi coco ralado.

domingo, outubro 12, 2008

Menino Mau

A minha vida toda eu quis ser um cara mau. Mas não tinha a menor vocação.

Aí, dia desses, minha chefe e amiga, que passa pelo menos oito horas do dia junto comigo, trabalhando diretamente, me disse uma coisa que me deixou com uma curiosa satisfação. Me disse algo como "você mudou. você não é mais aquele cara bonzinho e paciente que eu conheci quando viemos pra cá". Ela não me disse isso em tom de crítica. Quer dizer, oficialmente, deveria ser uma crítica. Mas o tom que ela usou, a expressão em seu rosto, os elementos todos me permitiram fazer uma leitura de que ela estava me dizendo "até que enfim você caiu na real".

E hoje eu trago no rosto um sorriso de quem realmente teve uma epifania. Eu caí na real. Não, eu não deixei de ser o sujeito cordial, polido e avesso a confusões que eu sempre fui. Mas eu repassei mentalmente várias coisas que eu considerava e que agora encaro como babaquices. Pessoas escrotas que eu inutilmente valorizei. Besteiras que eu fiz e coisas bacanas que eu deixei de fazer por pudores bobos.

Eu percebi, pela maturidade adquirida, que durante todos esses anos eu engambelei a mim mesmo. E que se eu me fodi na vida, ainda que pouco, não foi por culpa de um Deus sádico, nem de pessoas sem coração: foi por culpa minha mesmo, que fiquei impassível enquanto a situação exigia uma outra postura, mesmo que a postura fosse um blefe de minha parte. Eu respondi com sinceridade e coração aberto quando o momento era de mentir pra me proteger. Eu ofereci minha cara e deixei que batessem quando, na verdade, a oportunidade era perfeita pra eu embolachar a cara da vida. E deixei que se rissem de mim às minhas costas, quando eu queria chorar e dizer ao mundo que estava chorando. Ah, eu fui amador demais. E esse negócio não é pra amadores.

Aí agora eu me pego mais sagaz, me importando menos com os outros, mais egoísta. E gosto desse suposto meu novo eu. E tenho a impressão de que com ele eu vou atrair pessoas mais interessantes pra junto de mim.

Não tenho grandes planos para este final de ano. Mas alguma coisa vai acontecer.

sábado, outubro 11, 2008

100 anos de Mestre Cartola

Em homenagem ao saudoso Cartola, que se estivesse vivo estaria fazendo hoje cem anos, republico (**) trecho de um livro muito bom, de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, "A Canção no Tempo: 85 Anos de Músicas Brasileiras", Vol. 2: 1958-1985. No livro os autores contam a história e o contexto das principais canções da Música Popular Brasileira ao longo das décadas e no trecho escolhido falam sobre "As Rosas Não Falam", canção mais conhecida de Cartola.







"As Rosas Não Falam", Cartola




A história de "As Rosas Não Falam" começou numa tarde de 1975 em que o compositor Nuno Veloso apanhou Cartola e sua mulher Zica para um passeio na Barra da Tijuca, onde pretendia visitar Baden Powell. Não tendo encontrado a casa do violonista, Nuno resolveu aproveitar a viagem para passar numa floricultura e comprar para Zica umas mudas de roseira que lhe havia prometido. Tempos depois, flores desabrochadas dessas roseiras provocariam a indagação entusiástica de Zica ("Como é possível, Cartola, tantas rosas assim?...") e a resposta desinteressada de Cartola ("Não sei. As rosas não falam..."), que ele acabaria aproveitando como mote para a canção: "Queixo-me às rosas/ Mas que bobagem, as rosas não falam/ simplesmente as rosas exalam/ o perfume que roubam de ti..." Composta quando o autor completava 67 anos, "As Rosas Não Falam" foi lançada em 1976, num elepê notável, produzido por Juarez Barroso, o segundo de Cartola na gravadora Marcus Pereira. Neste álbum ele apresentava outras inéditas como a também obra-prima "O Mundo É um Moinho". Além da delicadeza e do requinte, o que espanta nessas músicas é o fato de terem sido criadas pelo compositor numa idade em que a maioria das pessoas já se encontra aposentada, sem muita coisa a oferecer. Cartola é um caso especial em nossa música popular. Homem de origem e vida modestíssimas, era, ao mesmo tempo, o poeta/compositor sofisticado. Pena que somente nos últimos anos de vida tenha conseguido gravar a maior parte de sua obra.








** Publicado originalmente em Sonhos e Clichês (www.freud_aperta_um.weblogger.com.br), no dia 19 de outubro de 2005.

sexta-feira, outubro 03, 2008

Um pouquinho de política...

Agora há pouco, no Jornal Nacional, passaram uma matéria tentando inibir a população a votar nulo. Segundo a Globo, "abdicando de escolher um candidato, você está criando condições para que se eleja vereador um cidadão que obteve uma quantia muito menor de votos". Tá. E daí?


Depois, aquela tal de Lúcia Hipólito, que há pouco tempo ia ao programa do Jô Tucano com uma pá de mulher que é da barra pesada - parafraseando Mestre Bezerra da Silva - meter o pau no governo Lula. Me apareceu dando a seguinte declaração: "Não vote nulo. Ainda dá tempo! Se você ainda não tem um candidato, analise, escolha, etc, etc, whiskas sachê..."


Pelos bagos de Marlon Brando! Minha filha, se o cara não escolheu uma porra de candidato até agora, você acha que agora, SEXTA-FEIRA, véspera de fim-de-semana eleitoral, é o momento propício? Incentiva o povo a escolher candidato de última hora e depois vai dizer que nêgo não sabe votar. Como diria Marcelo Mansfield, "eu prefiro ter um filho viiiiiiiiiiiaaaado do que um filho analista político dos telejornais da Globo!"


O voto é sigiloso e portanto eu não vou dizer que anularei o meu. (Para vereador. Porque para prefeito, votarei no Levy Fidélix. Depois de 25 anos falando desse bendito aerotrem, ele me convenceu). Não direi nada disso, nem sob tortura, boca-de-siri, voto é secreto.


Vote consciente. Você elege o NX Zero como banda do ano e depois tem que agüentá-los por um ano inteiro. E um ano é tempo pra caralho, como diria aquele comercial. Pense nisso.

quarta-feira, outubro 01, 2008

Eufemismos

Uma ex-namorada minha me disse, uma meia dúzia de vezes, que eu não servia para namorar com ela porque eu "gosto das coisas amenas". Na época, eu não entendia o que ela queria dizer com aquilo. Eu gosto mesmo das coisas amenas, não gosto de confusão, gosto de ficar numa relax, numa tranqüila. numa boa. Mas ficava puto tentando entender qual era o problema nisso. Até que outro dia, lembrando e pensando com os meus botões, cheguei numa resposta retardatária para a questão: "gostar das coisas amenas" era uma forma sutil e politicamente correta de dizer que eu sou (ou era, mas ainda devo ser) um bunda-mole. Bunda-mole teria me ofendido, por isso a moça, que sempre foi perspicaz, cunhou essa bela expressão, "gostar das coisas amenas". Você gosta das coisas amenas: você é um frouxo, um moleirão, um cara sem iniciativa e covarde. Interessante, não? O pior é que o tempo passou e eu não sinto que esteja gostando das coisas convulsas - o antônimo do que estamos falando. E talvez se gostasse duma encrenquinha, eu estaria experimentando alguns prazeres selvagens na minha vida. Mas, esqueçamos e passemos para outro exemplo.


Quando estou mal-humorado, eu costumo não ser cortês com as pessoas. Costumo fazer críticas sarcásticas, de ínicio veladas, depois explícitas. Costumo deixar bem claro, de forma agressiva mesmo, que estou de saco cheio e puto com pessoas ou situações. E geralmente faço isso com pessoas que gostam muito de mim e aturam a minha estupidez, porque as que não gostam simplesmente me mandam tomar no cu ou se afastam, magoadas. Um dia aconteceu uma coisa dessas com uma amiga de quem gosto e que acho que gostava muito de mim. Estava aborrecido e descontei nela, que disse ou fez algo com que não concordava. Estava já contando com o fato de que a pessoa iria se indignar. Me xingar, me bloquear no msn, sei lá. Alguma retaliação ela teria de me fazer, nem que fosse me dizer "você é um escroto, E-S-C-R-O-T-O!" Enfim. A minha amiga virou e me disse: "Nossa Rafa, você está nitroglicerínico hoje!" Eu não sabia se pedia desculpas ou dava um tapa na cara. Tem dias que você quer ferir quem te gosta, mas a pessoa não entra no jogo e isso dá uma bruta raiva. Você quer brigar, mas a pessoa gosta das coisas amenas.


Um último exemplo de como a língua portuguesa é rica no sentido de oferecer termos que disfarçam nosso completo desprezo ou pouca crença na inteligência alheia: minha mãe, quando me faz algum tipo de recomendação, costuma frisar que eu "sou muito desligado". Ok. É bonitinho ser desligado. Heróis românticos do cinema e da literatura costumam ser desligados. Não é essa a questão. O que pega, nesse caso, é que minha progenitora subestima - quase sempre com razão - a minha capacidade de raciocinio. Ela já usou, para me designar, as seguintes expressões: ingênuo, bonzinho, pessoa boa, pessoa sem malícia, você é igual o seu pai, cara muito legal, e por aí vai. Perceberam o que significa desligado? É óbvio, porra. É bocó, idiota, joão-bobo, otário, aquele que todo mundo passa pra trás, que cai no conto do vigário, etc. Quando ela vem com essa conversa, de que eu sou tranqüilo demais, já é prêambulo de um longo sermão que vai terminar com a certeza, de minha parte, de que ela me acha um tremendo pusilânime.


E de todas essas belas suavizações, que nunca me enganaram - ou enganaram por pouco tempo - eu só tiro uma conclusão: elas todas tem razão. Eu sou um bunda-mole, um escroto recalcado e um otário. Mas tem um porém (e sempre há um porém, como diria Plínio Marcos): por pouco tempo.