terça-feira, janeiro 31, 2006

Dispersos

Estou no meu Inferno Astral. Peço um pouquinho de compreensão aos amigos, pelo menos até o dia 18 de fevereiro. Tenho sido muito incisivo e intransigente nas minhas colocações. Acho que faz tempo que me tornei uma pessoa com essas características - quem me conhece há pelo menos uns dois, três anos, pode dizer se isso é verdade - mas isso tá ainda mais acentuado nos últimos dias. Às vezes não compensa levar tudo que eu falo a sério. Certas coisas é melhor relevar. Isso aqui NÃO é um pedido público de desculpas a ninguém. Eu não gosto de pedir desculpas. Só o faço em último caso. Mas sei quando estou errado.

***
Tem coisas que todo moleque faz e eu nunca tive muita competência para fazer também. Uma delas era soltar pipa. Chegava a época em que ventava mais: a coisa que mais se via era a molecada correndo de um lado pro outro, empinando. Nunca vi graça nisso. Ficar horas e horas contemplando um pedaço de papel dançando no céu. E para piorar, a diversão maior é cortar o pipa dos outros. Aí sim que eu me desestimulava. Engraçado a gente pensar em justiça, solidariedade, caridade, honestidade e todas essas coisas quando, desde criança, as brincadeiras já tem por objetivo a competição pura e simples e a barbárie. Isso sem contar as ilusões: a ilusão do poder, que é a sensação de ter o melhor e mais cobiçado pipa, de preferência cortado de outro otário - lembro-me de Hitler e Napolão que outrora atacaram e anexaram várias nações sob seus cetros. A sensação do domínio pleno da justiça e dos conceitos de certo e errado, bom e mau: polícia e ladrão (e quem era o ladrão, por outro lado, podia sentir o prazer da trangressão) . Enfim. Participei sim de algumas brincadeiras ditas "físicas". Mas não era o que mais me excitava. Eu ficava exultante mesmo era diante da possibilidade de inventar personagens, estórias, lugares. Criávamos estorinhas como se fossem seriados de TV. E as tardes se consumiam nesse processo. Às vezes usávamos Lego e bonequinhos para dar um auxílio visual.
Obviamente eu sempre fui humilhado no futebol. Os poucos gols que marquei na minha carreira de jogador amador foram muitíssimo comemorados por meus exultantes companheiros de time (e pelos companheiros do time adversário também, inclusive), que conheciam minhas limitações. Normalmente as partidas eram acompanhadas por lesões. Eu me arrebentava sozinho. A cabeça sempre sangrando.
Sobrevivi a tudo. Aos cortes, à minha imaginação, ao medo de não ser aceito nunca. E por incrível que pareça, sinto falta da época em que não entendíamos esse conceito de "politicamente correto" e podíamos fazer o que quiséssemos. Ainda que, já naquela época, eu achasse uma crueldade chamar a menina negra de "café preto" e "resto de incêndio". Enfim, sem saber se isso é meritório ou não, creio que fui uma criança atípica.
***
Acho que é perfeitamente normal a gente sentir saudade. Esse sentimento é inerente à nossa existência. Entretanto, eu acho que estou sentindo saudades DEMAIS. Muitas pessoas já me esqueceram ou lembram de mim de forma desbotada. Eu, no entanto, mantenho um lugar guardado para cada pequena reminiscência. Tenho medo de jogar papéis velhos fora. E tenho medo de jogar minhas lembranças fora também. Medo de ficar com as gavetas vazias e idem o coração (tava querendo evitar essa metáfora brega - coração é um órgão como qualquer outro - mas não consigo). Medo de ser esquecido também. Que diabos! A vida é muito mais que isso.
***
Por fim, quero dedicar o post de hoje ao Sr. Wellington Fernandes de Souza. Certamente ele sequer tomará conhecimento dessa menção aqui. Mesmo assim, se há uma pessoa nesse mundo que me decepciona pouco, essa pessoa é ele.
Cirilo está completando neste dia 30 de janeiro a idade de 22 anos. É um bom amigo, um bom filho, um irmão carinhoso. Um tio legal, embora pouco paciente. Uma pessoa querida por todos, e de quem ninguém nunca tem queixas, exceto eu. Tivemos poucos arranca-rabos até hoje. Ficamos sem nos falar apenas uma vez. E, veladamente, disputamos a preferência da mesma garota numa determinada época. Nesse episódio, creio que ficou-se no 0 x 0, o que achei bom porque mulher nenhuma compensa o estremecimento de uma grande amizade. Aliás, Cirilo e eu nunca tocamos nesse assunto, uma vez que ambos nos constrangimos com isso.
Faz tempo que não o vejo. Temo que as curvas tortuosas da vida acabem por nos afastar. Temo que ele resolva mesmo fixar residência em Ribeirão Preto ou qualquer outra cidade longínqua. É que tenho planos nos quais ele está incluso.
Uma das últimas lembranças que tenho dele foi a forma como ele conseguiu tornar divertida pra mim uma visita chata e burocrática que tive de fazer ao Arquivo do Estado. Quem mais para dar risada junto comigo da minha atrapalhação com os rolos de microfilme? E o X-Burguer no Treiler do Corinthiano também foi outra coisa que marcou.
Enfim, eu gosto de assumir minha pieguice quando falo dos amigos. Porque me deslumbra a magia que reside no fato de, existindo uns 6 bilhões de pessoas no mundo, você encontrar de forma meio "sem querer" uma meia dúzia que se parecem contigo. O Cirilo é um irmão que teve origem e vida semelhantes a minha, até aqui. E o modo dele de sentir e de se relacionar com o mundo e consigo mesmo me lembra muito a forma como eu tenho procedido. Enfim, parabéns Cirilo, queridão! Peço a Deus que você esteja sempre conosco.

sexta-feira, janeiro 27, 2006

São Paulo, Meu Lar, Minha Vida

Tecnicamente eu não sou um paulistano. Nasci no município de Guarulhos. Aliás, isso é uma crise de identidade fudida na minha vida. Porque apenas NASCI em Guarulhos. Assim que o médico assinou a alta hospitalar, eu já vim para a cidade na qual passaria minha infância e, provavelmente, toda a minha vida. Então me considero um paulistano, embora minha certidão de nascimento diga que sou um guarulhense. Meus pais nasceram e se criaram na Zona Norte de São Paulo. Os pais de meu pai (Nicolau e Pura) também nasceram na cidade, filhos da colônia espanhola que residia pros lados do Bom Retiro, Pari e adjascências. Minha avó materna, Dna. Itália, a mulher que me criou (e que me cria até hoje) é francana de nascimento, mas passou a infância e adolescência no Triângulo Mineiro. Veio pra cá com meu avô, Fábio, que era mineiro também mas morreu aqui, nalguma esquina do Jaçanã, de traumatismo craniano. Como se vê, minha família tem raízes recém-nascidas em São Paulo.

São Paulo é uma cidade fascinante, a meu ver, porque sempre há algo novo pra se descobrir. Por mais que você ande por aí, sempre haverá uma esquina que você nunca dobrou ou uma ponte que nunca atravessou. Os mendigos nas ruas mudam de tempos em tempos. A sujeira, a poeira, tudo é de cárater cíclico e transitório. Cada assalto sofrido é uma emoção nova. Afinal, um ladrão não pode levar duas vezes o mesmo relógio.

Sou apaixonado pela Zona Norte. Aqui estão construções famosas. O Carandiru, implodido recentemente era uma atração pra quem passava de metrô, como dizem os Racionais naquela música. Muitos pagodeiros, que fizeram sucesso na década de 90 tinham seus barzinhos em Santana, Tucuruvi e seus casarões ali na Serra da Cantareira. Vez por outra você podia emparelhar seu humilde Fiat Uno com a BMW de algum deles num sinal de trânsito no Jardim Tremembé e receber um sorriso travesso da negritude, só pra contrariar. Dizem que eles - a maioria, pelo menos, salvos os que viraram cantores latinos de música brega - cheiraram as BMWs todas. Há ainda o simpático bairro do Jaçanã, onde morei por 7 anos e onde vou sempre, porque parte da minha família reside lá. Sinto um certo orgulho por, de certa forma, pertencer ao bairro da canção do Adoniran. Tucuruvi e seus sebos é um bairro especial também e que cresceu muito, principalmente depois que ganhou estação de metrô. Santana é o local para onde preciso rumar sempre que tenho que ir pra algum lugar. É onde, pode-se dizer, começa a "civilização".

E chegamos finalmente à Pedra Branca, o bairro onde vivo desde os 7 anos de idade. De um lado, o Horto Florestal. De outro, a Serra da Cantareira. E os bairros vizinhos, que são apenas extensões da PB - com um pouco mais de comércio e movimento, é verdade. Nos últimos anos, botaram um Corpo de Bombeiros na saída do bairro e um posto policial no centro dele. A construção mais imponente dessa cercania aprazível e pacata é um conjunto habitacional da Inocoop conhecido na região como "os predinhos". Trata-se de um grande buraco construído ao lado da estrada que leva a Mairiporã. Nesse buraco fincaram 10 blocos de apartamentos com algumas guaritas em volta, um pouco de mato em locais estratégicos, vagas para carros por toda parte e um playground ao centro. Muita escada pra se subir, o playground imundo e pessoas com o rei na barriga. Cresci ali, rodando todo o espaço murado, convivendo com seguranças e rumores de que crianças da favela vizinha queriam e podiam pular os muros. Conheci as injustiças sociais aos poucos e vi o que era a classe média falida. Pessoas que não pagam o condomínio pra trocar de carro todo ano. Crianças desrespeitando faxineiras e demais funcionários que estão sempre por aí tentando deixar as coisas em ordem, embora os garotos sempre urinassem nos elevadores (problema só sanado quando botaram câmeras em toda a parte), quebrassem fechaduras, sujassem paredes e promovessem balbúrdias.
Quem não sabe como é a merda por dentro inveja o local. O condomínio goza de enorme popularidade no bairro. Quem já morou aqui volta sempre. Quem não mora, dá um jeito de entrar, como se aqui fosse um paraíso. Eu invejo, por outro lado, essas pessoas que moram em casinhas humildes, sem status, mas pelo menos não tem que conviver com gente arrogante que come mosca e arrota frango assado. Classe média falida que não tem culhão pra comprar um apê na Voluntários da Pátria. Quando cresci, comecei a fazer amigos fora do buraco negro. O bairro é bom, contudo. As pessoas são pobres, porém limpinhas, como já diria aquele esquete de humor da Globo. Exceto no condomínio, é evidente.
Ralei meus joelhos no Horto tentando pular poças de água. Cantei no coral, abracei árvores, recolhi lixo que jogavam no meio-ambiente. Me matei em corridas, bebi água da bica, fiz pique-niques em épocas remotas. Pensei muito na vida. Vi os velhos correndo por ali e tentei dar saltos mentais no tempo. Chorei, humilhado por uma professora de educação física e suas corridas de revezamento. Fui um "Amigo do Horto".

Celebrei os primeiros amores. Ou pré-amores, uma vez que não sabia amar ainda. Construí lembranças. Assisti jogo na TV da padaria.

Me apaixonei (ou algo que o valha) por uma menina da Vila Mazzei.

Conheci bem também outros bairros, como Ipiranga, Vila Mariana, Brás, Paulista e centrão velho. Enfim, muita coisa pra falar e lembrar.

Eu amo São Paulo? Creio que amo. Mesmo descobrindo essa gente xenófoba, bairrista, burguesa, assassina de mendigos. Gente que bate palmas pra Geraldo Alckmin e que diz, o peito estufado: "a Locomotiva do País". Blargh... Essa classe média falida que domina tudo e controla o mundo de dentro de shoppings centers, com seus celulares pré-pagos. E a cidade segue com os favelados e nordestinos que eles tanto odeiam. E na Zachi Nachi aquele Cingapura que não engana ninguém. E temos ainda os malufistas.

Parabéns São Paulo, 452 anos. Um dia serei digno de escrever sobre ti.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Cidadão de bem (TFP)

"Vou policiar meus filhos. Vou lhes dar mesada e me certificar de que eles não a gastarão com coisas imbecis como a caridade, por exemplo. Se seu coleguinha não tem dinheiro pra comprar balas e você tem, foda-se ele. A culpa é do pai dele que não teve competência pra dar um bom padrão de vida à família. Meu dinheiro suado você vai poupar. Ou, no máximo, usufruir com coisas que te trarão retorno, ainda que frívolos e/ou de prazer momentâneos. Dar dinheiro (ou qualquer outra coisa) aos outros não traz retorno algum e só forma vagabundos e oportunistas. Se um dia, por alguma razão, precisar fazer caridade, ao menos divulgue-a bastante, para que esse gesto possa ser proveitoso de alguma forma. Não é bom que pensem que você é avarento.

Aos 12 anos de idade, você passará por um teste de sexualidade. Nessa idade quero que você já saiba fazer coisas engraçadinhas, como se masturbar, passar a mão na bunda da empregada e tratar as mulheres em geral como objetos, assim como eu trato sua mãe. É bom que você saiba, meu filho, que as mulheres só servem pra dar suporte prático aos homens e ajudá-los a gozar as coisas mundanas. Não dê muito atenção ao que elas dizem, pois isso nunca é útil.

Uma coisa importante que você deve saber é que existe um PADRÃO. Deus criou as coisas normais e o Diabo criou as anormais que existem no mundo. Pobres, bichas, pretos e nordestinos são as coisas anormais. São perigosos, tem temperamento agressivo e não gostam de nós, porque percebem a nossa superioridade. Aprendi isso com meu pai e agora passo esses importantes valores pra você. Contudo, você deve ser discreto nas suas posturas. Se não for assim, as pessoas que gostam de se passar por benignas vão te chamar de racista, neonazista, xenófobo e etc. Você deve renegar sempre essas palavras. Afinal de contas, você é um cidadão de bem, temente a Deus e não uma dessas bichas que desafiam a Lei Divina ou um desses baianos que sujam tudo, estupram e matam.

Se um nordestino sobe na vida, ele é oportunista. Se não sobe, é vagabundo, bebâdo e preguiçoso. Saiba isso sobre essa gente feia. Cariocas são pessoas que você também deve detestar, porque todo paulista que se preze odeia cariocas. Tenho pena daquele estado cheio de bandidos, maloqueiros, favelados e prostituição. Não é bairrismo, meu filho. É só bom-senso de saber que São Paulo é o coração do Brasil e que, não fôssemos nós, esse país jamais iria pra frente.

Em suma, meu filho: deteste todos aqueles que forem diferentes de você. Tire proveito em tudo. Pense sempre em você, pois cada um tem que cuidar de si. Não ligue para a pobreza pois, como eu já disse, a culpa é do próprio pobre, que não estudou e não trabalhou. Mendigos mijam e sujam tudo: devemos odiá-los. Ou apoiar medidas de higienismo por parte do governante (que deve ser, para nosso bem, de partido social-democarata ou liberal). Gays são aberrações. Esquerdistas são vagabundos oportunistas. Fique longe da maconha, mas beba uísque da melhor qualidade.

E lembre-se sempre: orgulhe-se de ser da CLASSE MÉDIA, que é quem movimenta a economia do país. E se papai falir, não fique triste: sempre poderemos fingir".


Dito isto o homem gordo sofreu um enfarte e caiu se estrebuchando no chão, o uísque molhando o tapete pseudo-chique.

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Alistamento e Elis Regina


Bom, vamos por partes! - já diria Jack, O Estripador.

Primeiramente uma letrinha que posto aqui em homenagem ao meu irmão, Fábio. O moleque foi hoje fazer o alistamento para o Serviço Militar Obrigatório e me lembrei de quando eu próprio fiz o meu, em 2002. Na época eu já estava na Unesp e se fosse convocado, seria a desgraça da minha vida. Mas o médico que me examinou foi bastante gentil e democrático e aproveitou minha hipermetropia e meus problemas de coluna pra perguntar se eu fazia questão de servir. E eu disse que não. Então fui providencialmente incluído no excesso de contingente. Meu irmão agora vai passar por toda essa burocracia novamente até ser, provavelmente, dispensado no meio do ano. O que eu penso sobre essa praga de Serviço Militar está na letrinha de música abaixo, de um compositor que tanto eu quanto o Fábio curtimos.


Indecência Militar
(Gabriel O Pensador)

Na porta do local do alistamento militar (indecência)
Esperando pela hora de entrar
De saco cheio estava eu lá (paciência)
Sem nenhuma mulher pra agarrar e nenhum som pra escutar
E um monte de marmanjo do meu lado eu vi
Então pensei: "Porra. O quê que eu tô fazendo aqui?"
(Pergunta sem resposta) e raiva lá dentro
Foi assim que eu fiz o rap pra passar o tempo

Porque o serviço militar obrigatório é uma indecência
Um ano sem mulher batendo continência
Escravidão numa democracia é uma incoerência
Um ano sem mulher batendo continência

Um ano sem mulher
Só ralando
(E o salário...)
Não leve a mal mas isso é coisa pra otário
Alguns podem até gostar da brincadeira
Mas o serviço só é bom pra quem quer seguir carreira militar
Mas rapá... pro Pensador não dá
Servindo o Exército, Marinha, Aeronáutica ou qualquer porra dessa
Num interessa, eu ia ser um infeliz e ia ficar revoltado como eu nunca quis
Servindo quem montou a ditadura aqui no meu país!
Usando farda, lavando o chão
Sem reclamar de nada pra num ser jogado na prisão (Hum mas que situação!)
Batendo continência e fazendo flexão
Para os caras que prenderam meu pai e mataram tantos outros institucionalizando a repressão (Não!) Agora acorda e concorda com esse refrão (E porque não?)

Porque o serviço militar obrigatório é uma indecência
Um ano sem mulher batendo continência
Escravidão numa democracia é uma incoerência
Um ano sem mulher batendo continência

Nas mãos dos militares muito jovem já morreu
Num quero ser soldado
Quem manda em mim sou eu
Isso é o defeito da nossa sociedade
Exijo mais respeito pela minha liberdade
Um ano da minha vida não pode ser gasto assim
Escravizado por quem nunca fez nada de bom por mim
Essa contradição alguém me explique um dia
Serviço obrigatório não combina com democracia

A porta abre e todos entram
Torcendo pra sobrar
Enquanto isso dá vontade de cantar:

Porque o serviço militar obrigatório é uma indecência
Um ano sem mulher batendo continência
Escravidão numa democracia é uma incoerência
Um ano sem mulher batendo continência.

Aproveito pra recomendar as letras desse rapaz, que são muito boas. Especialmente as mais antigas, como "Lôraburra" e "Retrato de um Playboy", que fazem uma crítica ácida a certos segmentos da sociedade que o Pensador deve conhecer bem (afinal ele próprio pertence à classe média). Vale a pena ouvir.


24 anos sem Elis Regina


Além de cantora fantástica, uma qualidade imprescindível: Elis era corinthiana, maloqueira e sofredora, graças a Deus!


A maior intérprete da música popular brasileira. Morreu num dia 19 de janeiro. Uma perda irreparável, certamente, para quem estava acostumado com o tom emocionado e trágico de suas apresentações. Uma mulher que cantava a vida com a mesma intensidade com que a viveu. Deixou uma porrada de canções dos mais variados compositores, de samba à jazz, gravadas para a posteridade. E eu tenho a ingrata missão de escolher uma pra postar aqui. Bom, vou postar uma música de um de meus compositores perferidos, que dona Elis praticamente reescreveu e deu novo sentido, quando a cantou ao vivo e aos prantos em programas de televisão. "Ela não estava cantando a música. Estava vivendo a música", é o que afirmam pessoas que viveram esse momento histórico. Bom, vai aí:


Atrás da porta
Francis Hime - Chico Buarque/1972

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito (Nos teus pelos)*
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua...

* verso original vetado pela censura

1972 © by Cara Nova Editora Musical Ltda. Av. Rebouças, 1700 CEP 057402-200 - São Paulo - SPTodos os direitos reservados. Copyright Internacional Assegurado. Impresso no Brasil



quinta-feira, janeiro 19, 2006

Tirinha, cancioneta e reminiscências

Uma pitada de sarcasmo dos bons, pra variar...

Letting The Cables Sleep - Bush
(Gavin Rossdale)

You in the dark

You in the pain

You on the run

Living a hell

Living your ghost

Living your end

Never seem to get in the place that I belong

Don't wanna lose the time

Lose the time to come

Whatever you say it's alright

Whatever you do it's all good

Whatever you say it's alright

Silence is not the way

We need to talk about it

If heaven is on the way

If heaven is on the way

You in the sea

On a decline

Breaking the waves

Watching the lights go down

Letting the cables sleep

Whatever you say it's alright

Whatever you do it's all good

Whatever you say it's alright

Silence is not the way

We need to talk about it

If heaven is on the way

We'll wrap the world around it

If heaven is on the way

If heaven is on the way

I'm a stranger in this town

I'm a stranger in this town

I'm a stranger in this town

If heaven is on the way

If heaven is on the way

I'm a stranger in this town

I'm a stranger in this town.

Marcela

Espero algo de você. Ainda que de tuas mãos só caiam migalhas que eu, ávido, recolho junto aos teus pés. Pés bonitos, muito pequenos e brancos, assim como as pernas. (Mas que pusilânime sou eu, que perco tempo descrevendo pernas, meu Deus) ! Principalmente as tuas pernas, que sempre descreveram um movimento angular acelerado, de prevísivel colisão do teu pé com minha bunda. Você me proporcionou indescritíveis momentos de romantismo - para não mencionar as poluções homéricas! - que eu soube engavetar em cada neurônio desocupado da minha cabeça. Escrevi, baseado nisso, as estorinhas para adormecer bovinos. Vaca! É isso que tu és, uma grandessíssima vaca. Uma vaca que jamais me ofereceu as tetas pontudas e novas para ordenha. Me frustra pensar em ti e me lembrar que há um longo caminho a percorrer para que eu possa enfim jogar nosso amor no ostracismo. Você sentirá sempre, no fundo do teu coraçãozinho confuso e primitivo, uma sensação de que deixou algo para trás, desemparado. Sim, minha querida, esse algo sou eu. Eu que te comi na minha mente e ao, mesmo tempo, soube reconhecer teu valor como SER HUMANO. Eu que me apaixonei por suas fraquezas. E pelo paradoxo que é tuas fraquezas serem tua maior força. E da tua feiúra tímida tirei beleza, como o desabrochar de uma flor pisada por mim num jardim de outrora. E do silêncio tirei o conforto, a ilusão, as palavras e a presença. Ainda hoje, e por muito tempo, não entendi completamente tudo o que aconteceu. E no dia que compreender, nada mais fará sentido. Você é um caminho que escolhi seguir e que vi que dava em lugar algum. Estou agora voltando para trás, mas não sem admirar as flores que você plantou no meu coração. Eu te amo. Vou dizer isso pra você com todas as letras em algum sonho.

Fim.


quarta-feira, janeiro 18, 2006

O Jeitinho Brasileiro

Frase ouvida numa fila de 12 horas para comprar ingresso pra um show da banda de rock irlandesa U2:

"Brasileiro é que nem papel higiênico: ou tá no rolo, ou tá na merda".

Deus quando criou o mundo, percebeu que deveria criar algumas dificuldades para os homens, para que eles aprendessem com os erros e amadurecessem. Assim, com o desenvolvimento da humanidade e o surgimento das nações, Deus mandou algumas pragas para cada região, a fim de testar os homens e ensinar-lhes algumas coisas.
Na Europa, Peste Negra. No Japão, vulcões, terremotos. Nos EUA, furacões, Georges W. Bushs e outras tragédias naturais. Faltava o Brasil.

Para o Brasil, não havia nenhum desastre ambiental para implementar. A localização do país é boa, privilegiada mesmo. Furacões passam longe, vulcões aqui não pipocam e nada de tremores de terra também. Bom, um pouquinho de seca ali no Nordeste, mas é um pedacinho pequeno se comparado ao resto do país. "Só para não dizerem que não fodi nem um pouquinho o Brasil", pensou. Mas ainda não era o bastante. Como o Brasil vai progredir sem sofrimento? Nenhuma nação pode viver em paz plena e total, isso não é saudável nem real. Então Ele teve a GRANDE SACADA. Criou logo uma ferramenta importante para jogar entre os homens e testar sua boa-fé. Essa ferramenta começou a ser empregada desde que os primeiros homens de além-mar pisaram aqui. Mas se fortaleceu e ganhou corpo quando os brancos transaram com os índios, quando os negros chegaram também e se juntaram ao carnaval e quando o nome BRASIL passou a ser conhecido no mundo. Aí a tal "ferramenta" maldita que Deus criou e os homens aceitaram e desenvolveram ganhou até nome: JEITINHO BRASILEIRO. Com algumas derivações como MALANDRAGEM BRASILEIRA ou JOGO DE CINTURA.

Essa ferramenta começou a ser usada para garantir a predominância de interesses pessoais e individuais em detrimento de interesses coletivos. Ou seja: "pra que pegar uma fila desse tamanho se posso molhar a mão do fiscal ali na frente?" ou "essa repartição vai fechar, eu vou ser mandado embora, mas desde já vou garantir o meu levando esse computador aqui pra casa".
Engraçado é que, no Japão e em países onde o povo segue à risca regras de civilidade e de correção social, isso seria motivo de vergonha. Mas nós, institucionalmente, nos orgulhamos do JEITINHO BRASILEIRO. Mais ainda: exportamos JEITINHO BRASILEIRO para o mundo. E não cobramos royalties por isso! O mundo conhece tão bem nosso Jeitinho que, todos os anos, turistas das mais diversas nacionalidades vem para o Rio de Janeiro comer a mulherada. Ora, no país do Jeitinho, dá-se um jeitinho pra tudo. "É muito imoral o sr. comer essa popuzada (que aliás é minha irmã) aqui na praia, gringo? Não esquenta, eu tiro minha mãe do barraco e o senhor passa a vara nela lá. E depois acertamos os 500 mangos que o Sr. trouxe da Irlanda". Welcome Copacabana. E Wel come as mulheres de Copacabana. Parabéns Wel, feliz consumidor do Jeitinho Brasileiro!

Reclamar dos políticos é sincero? Estamos na merda só por causa deles? Ou será que é por que nos achamos muito espertos?

Apesar de tudo, ainda me orgulho de ser brasileiro. Mas precisamos erradicar o Jeitinho Brasileiro, antes que ele erradique com a gente. ("Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são!", Macunaíma). Ou fazemos as coisas de forma direita nesse país, ou seremos sempre Terceiro Mundo, República de Bananas e etc.

"Ah, Rafael, vá tomar no cu com seu discurso e sua lição de moral".

Está bem. Como não dou Jeitinho pra nada, porque sou um desajeitado por natureza, seguirei tomando no cu - no bom sentido, é claro! Mas não deixarei de sonhar por um país melhor, com oportunidades iguais pra todos, distribuição de renda e o fim do QI (Quem Indica) obrigatório para tudo e todos. Sou brasileiro e não desisto nunca, como já diria aquela propaganda hipócrita.


Ah sim: esse blá-blá-blá todo é só resultado da raiva gerada pela palhaçada que virou o show do U2 no Brasil. Só isso. Logo mais passa.

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Lágrimas de Medo

Quando eu estava lá pela quinta série, tinha uma amiga inseparável: a Regina. Não sei exatamente o porquê, mas em toda a minha vida, enquanto os rapazes viviam sempre em grupos nos quais mulheres não eram bem-vindas, eu sempre mantive uma amiga com a qual passava a maior parte do tempo, conversando, ouvindo conselhos, fazendo confidências, essas coisas. Mesmo sem nunca ter sido aviadado, sempre preferi a companhia feminina às brincadeiras babacas dos garotos. Talvez um traço de maturidade precoce dentro de mim, talvez problemas de relacionamento com meus iguais. Enfim. O fato é que essa amiga da escola, a Regina, estava sempre comigo. E, naquela época, meados dos anos 90, ela era aficcionada por uma banda pop chamada Tears For Fears. "Quer dizer 'Lágrimas de Medo' - dizia-me ela. Eu, que sentia um mal-estar de pensar nas tais lágrimas de medo, não compreendia bem o que ela sentia, porque eu sequer ouvia música nessa época - musicalmente falando, desse período, recordo-me apenas das referências aos Tears For Fears, da Taísa (que todos diziam que era a fim de mim, que eu achava uma magrela-nariguda-louca-zuada e que depois achei gostosa quando a vi já no colegial, com aquela saia e o chapéu country) cantando "Pais e Filhos" no busão voltando do Simba Safari e da prefessora carrasca de matemática que achava graça nos Mamonas Assassinas.

Regina gostava dos caras. E tinha qualidades também além disso, para que eu possa me lembrar dela. Uma vez me deu um livro do Gil Vicente: "O auto da barca do Inferno" e "A farsa de Inês Pereira". Obviamente não era o melhor presente pra um moleque de 11/12 anos de idade que só lia Turma da Mônica. No entanto por esses dias encontrei o livro perdido aqui em casa e senti uma certa ternura ao ler a dedicatória. O livro ficou, porque Regina passou pela minha vida e não nos dissemos adeus.

Quando fui pra Bauru, porém, aconteceu uma coisa engraçada. As "Lágrimas de Medo" invadiram minha vida justamente quando eu mais ansiava chorar lágrimas de alegria. Peguei emprestado com o Wiiliam aquele CD coletânea que só viria a devolver, por questões de consciência pesada, no último ano de faculdade. Todos os clássicos do 'Tears' estavam lá. Estava lá uma das minhas músicas preferidas, que embalavam minhas caminhadas matutinas pelo Viaduto do Chá, no ano de cursinho: "Head Over Heels", com aquele solinho de teclado que tanto gosto. Mas calhou de eu me apaixonar pela C. justamente quando o som que ouvia era "Woman In Chains". Essa música acabou me deprimindo, talvez por já ser naturalmente depressiva, talvez por eu tê-la associada a um amor impossível (ou ambas as coisas) . Mas o pior estaria por vir. MS é fã de Tears For Fears. E me fez saber, cruelmente, que sua música preferida é "Advice For The Young At Heart". Típico dela, gostar dessas músicas excessivamente românticas e cafonas. E o pior é que eu mesmo acho essa música bonita. Porém, quando a ouço, sinto meu coração se apertar e uma vontade imensa de bater as botas. Algo que canção nenhuma provocou em mim antes. E todas as músicas da banda adquiriram um tom sombrio. Os videoclipes medonhos martelando de madrugada na MTV, apenas contribuindo para que eu sinta saudade de uma coisa que nunca aconteceu. E mesmo gostando das músicas, sinto-me incapacitado para ouví-las. E algumas vezes, quando cedo e as ouço e me lembro de tudo o que aconteceu e de como meu coração não estava/está preparado, sinto vontade de chorar. E o nome da banda, nessas horas em que o pânico me toma, me parece mais do que apropriado.


Greatest Hits (82-92) para você deixar as lágrimas rolarem ou dar aquela bela gorfada enquanto ouve.


Advice for the young at heart

Advice for the young at heart
Soon we will be older
When we gonna make it work ?

Too many people living in a secret world
While they play mothers and fathers
We play little boys and girls
When we gonna make it work ?
I could be happy
I could be quite naive
It's only me and my shadows
Happy in our make believe
Soon...
And with the hounds at bay
I'll call your bluff
Cos it would be okay
To walk on tiptoes everyday
And when I think of you and all the love that's due
I'll make a promise, I'll make a stand
Cos to these big brown eyes, this comes as no surprise
We've got the whole wide world in our hands
Advice for the young at heart
Soon we will be older
When we gonna make it work ?
Love is promise
Love is a souvenir
Once given
Never forgotten, never let it disappear
This could be our last chance
When we gonna make it work ?
Working hour is over
And how it makes me weep
Cos someone sent my soul to sleep
And when I think of you and all the love that's due
I'll make a promise, I'll make a stand
Cos to these big brown eyes, this comes as no surprise
We've got the whole wide world in our hands

Advice for the young at heart
Soon we will be older
When we gonna make it work ?

Working hour is over
We can do anyhting that we want
Anything that we feel like doing
Advice...

Qualquer dia eu continuo a tortura de pensar em músicas cornas como "Slave To Love". Aliás, essa sim quase me matou. Mas aí já é outra estória.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Vou à Globo protestar contra o sistema. Deixe meu champagne do gelo!

Quem vê os Titãs hoje, tocando em especiais da Rede Globo e dando entrevistas para a MTV, talvez não os associe com os caras que eram uns vinte anos antes. Bom, muita pretensão minha seria dizer que eu me lembro deles vinte anos antes. Eu era um bebê vinte anos antes. No entanto, ouvindo as coisas antigas dos caras, percebi que essa música que eles lançaram agora - e que foi considerada o "grande protesto" de uma banda de rock contra esse governo mensaleiro que aí está ("Filho da puta! Bandido! Corrupto! Ladrão": um pleonasmo ambulante e os escândalo cretino pelo uso do palavrão) - não passa de estória da carochinha perto das letras que eles faziam nos anos 80. Tudo bem que eram letras panfletárias, até porque os Titãs aprenderam a protestar contra o sistema quando se conheceram no Colégio Equipe, uma escola de classe média alta de São Paulo. Mesmo assim, soa pesado demais - para que alguns estômagos aguentem - dizer: "Eu não gosto de padre /Eu não gosto de madre/ Eu não gosto de frei. /Eu não gosto de bispo /Eu não gosto de Cristo/ Eu não digo amém (Igreja - Nando Reis - 1986)".

Enfim, falo aqui de um álbum que considero - não só eu, mas muitos - o melhor da longa carreira dos Titãs. Cabeça Dinossauro. Letras ácidas falando da truculência da polícia (com a clássica frase "Polícia para quem precisa/ Polícia para quem precisa de polícia"), da Igreja, da Família ("Janta junto todo dia, nunca perde essa mania!"), enfim, de todos os valores "cristãos-burgueses-familiares-TFP". Um disco meio punk, em essência. O verdadeiro protesto dos rapazes do Equipe. Feito numa época em que protestar NÃO era sinônimo de SER OPORTUNISTA. Pelo menos não na forma em que isso se dá hoje, com tucanos posando de paladinos da justiça e Malufs sendo considerados bodes expiatórios.


Disco clássico dos Titãs, o "Cabeça" completa 20 anos de idade em 2006


Porrada (1986)
Arnaldo Antunes / Sérgio Britto

Nota dez para as meninas da torcida adversária
Parabéns aos acadêmicos da associação
Saudações para os formandos da cadeira de direito
A todas as senhoras muita consideração.
Porrada
Nos caras que não fazem nada.

Medalinhas para o presidente
Condecorações aos veteranos
Bonificações para os bancários
Congratulações para os banqueiros
Porrada
Nos caras que não fazem nada.

Distribuição de panfletos
Reivindicação dos direitos
Associação de pais e mestres
Proliferação das pestes
Porrada
Nos caras que não fazem nada.

Ciclope / Warner Chappell

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Dois contos frescos (ui!)

Vísceras retiradas


Decidi que atiraria sempre a primeira pedra. E antes que alguém me ferisse, eu machucaria primeiro. Nada de dar brecha para que me atacassem, para que localizassem meu ponto fraco. Não! Eu pleiteei ser invulnerável. Sabia que a intenção deles era, mais cedo ou mais tarde, subir nas minhas costas para enxergar além do muro. Como o quadro que meu (falecido) tio pintou: "o negrinho vê o sol por trás do muro". Mas eu não seria o negrinho. Eu seria o senhor de mim mesmo e dos outros. No fundo, eu sempre quis o poder.

***

Para ofender o pobre, diga-lhe que ele é ladrão.
Para ofender o rico, diga-lhe que ele é pobre.
Para ofender o vaidoso, diga-lhe que ele é feio, ou burro, ou bobo, ou dispensável.
Para ofender o desgraçado não basta dizer algo. É preciso bater nele com um porrete.

***
A moça declarava seu amor enquanto o seu amado açougueiro retirava tripas de um novilho na sua frente. Junto com sua paixão incontida misturava-se a ânsia de vômito e o desejo de recuar. Mas ao mesmo tempo, sentia também um fascínio voraz que a impelia para aquele bárbaro, sujo de sangue como um velho caçador e fedido como um búfalo abatido. Imaginava ser penetrada depois por um pênis avantajado e sentia prazer em pensar que seria a primeira da família a gozar os prazeres da carne, pois sua mãe e suas irmãs mais velhas eram claramente infelizes. Recusara-se a vários paspalhos a fim de chegar ao objetivo de gozar com um homem de verdade. Os pais, conservadores e tradicionalistas, não podiam permitir que ela se unisse a um boçal que vivia de separar vísceras de boi. Expulsaram-na de casa, sem ter alternativa. Ela foi ter com Lupicínio, o açougueiro agigantado, que ficou surpreso com seu pedido de aceitá-la como companheira. Viveram bem por muitos dias. Ele chegava cansado do trabalho e, dia sim dia não, tomava um banho. Depois, suando em bicas e exalando um cheiro forte de touro, agarrava-a com força e a abraçava a ponto dela pensar que seus ossos se partiriam. E como ele fodia! Ah! As noites pareciam curtas para tanto prazer.
O consumo de carne no açougue em que trabalhava Lupicínio aumentou muito por esse tempo. Fingindo-se horrorizadas, as senhoras da vizinhança queriam ver com quem estava vivendo a "filha de Dna. Maria Amélia". Observavam por muito tempo Lupicínio batendo com força na carne de segunda para amaciá-la. Depois saíam do estabelecimento resmungando sobre a indecência que pairava no bairro e sobre aquele tipinho asqueroso que devia estar numa prisão e não num açougue.
Com efeito, as velhas tinham um quê de profetas. Pouco tempo depois, após uma transa, Lupicínio matou a companheira asfixiada com um travesseiro. Foi detido e, dizem as más línguas, currava pelo menos seis companheiros por dia na carceragem. A mulher morta foi submetida à autópsia e os legistas assustaram-se (e divertiram-se) com o grau de dilatação de seu ânus.
***
A Segunda Chance
Perdera tudo no jogo. Inclusive a dignidade. Foi pedir abrigo na casa do irmão.
- Entre sem fazer barulho, os meninos estão dormindo.
É importante dizer que esse irmão o detestava. Só não lhe bateu a porta na cara por consideração à falecida mãe. Mas o que dizer do Olavinho? Era um cretino. A mãe (santa mulher!) lhe deixara a casa em que viviam. Pois ele a perdeu no jogo! As economias que juntou antes de ser demitido do emprego também foram gastas da mesma forma. E um vício nunca vem sozinho: Olavinho agora bebia como um gambá. Adalberto pensou que devia dar um jeito na situação logo, pois não queria um traste daqueles em sua casa dando mal exemplo para seus filhos. No dia seguinte - Olavinho sóbrio - conversaram à mesa do café da manhã:
- O que aconteceu?
- Bom, Beto... Você sabe... Estou na sarjeta. Muitas dívidas. Tive de vender a casa...
- Não pensou duas vezes antes de se livrar da casa que era de mamãe, não é?
- Não tive escolha. Me meti com gente pesada. Podiam me matar.
A mulher de Adalberto fez cara de nojo e mandou as crianças irem se aprontar pra escola. Adalberto sorriu irônico. "Que patife era aquele!"
- Eu sei que você perdeu a porra da casa no jogo. Você pode enganar muita gente, mas não a mim que te conheço desde que você mijava na cama, Olavo!
- Beto, não te preocupa! Vou dar o fora logo! Só te peço uns dias, até eu me ajeitar. Eu vou sair do país. Vou juntar uma grana e me mandar pra Bolívia, ou pro Paraguai. Tenho amigos que podem me empregar por lá.
Cecília novamente fez cara de nojo. Olhou para Adalberto com uma expressão que dizia: "Não vou aguentar essa aberração aqui em casa por muito tempo!"
------------------------------------------------------------------------------------------------
Adalberto não conseguiu se concentrar no trabalho naquele dia. Havia saído de casa preocupado. Tinha medo de que a mulher tivesse algum problema estando sozinha em casa com Olavinho. Porque ele tinha certeza que o traste não sairia pra procurar emprego ou algo assim. Na certa estaria esparramado no sofá tomando sua cerveja. Ou sairia pela manhã para dar uma volta pelos bares do bairro para depois voltar para o almoço. E Cecília não era mulher de aguentar esse tipo de coisa. Temia chegar em casa e encontrar um bilhete dela dizendo que fora com as crianças para a casa da mãe.
De repente um pensamento ainda mais tenebroso lhe assombrou: e se Olavinho estivesse falando sério? E se existisse mesmo gente da pesada atrás dele? Podiam fazer mal à Cecília e às crianças! Tentou sair mais cedo do trabalho. Quando chegou em casa, tudo parecia estar normal. Cecília fazia o jantar na cozinha e as crianças brincavam na sala.
- Onde está o Olavinho?
- Não sei. Ficou fora o dia todo. Disse que ia arrumar um biscate por aí para fazer.
Os dias que se seguiram passaram da mesma forma. Olavinho ficava fora o dia todo e aparecia só à noite, para dormir. Não deu sinais de que tivesse bebido ou jogado naqueles dias. E para completar, ao fim da semana, chamou o irmão de canto e lhe entregou um macinho de notas:
- Olha, consegui essa grana fazendo uns serviços de pedreiro aqui no bairro. Se não acredita, pergunta pra velha aí da frente. Tua mulher também pode confirmar. Toma aí pra você, como forma de pagar minha estadia!
Adalberto olhou o dinheiro admirado, pensando que aquilo não podia ser verdade.
- Não quero. Guarda teu dinheiro. Você vai precisar quando sair daqui.
- Sabia que cê não ia aceitar. É um orgulhoso. Não importa. Vou deixar o dinheiro com a Cecília, pra ela fazer as compras da casa. O que sobrar dou pros moleques, afinal eles são meus sobrinhos e nunca dei porra nenhuma pra eles.
Adalberto não respondeu. Virou as costas e entrou no quarto. Só o que ele sabia é que Olavinho não podia continuar na casa.
------------------------------------------------------------------------------------------------
O fato é que passou-se um mês e Olavinho continuava morando com eles. Ao fim de cada semana, continuava dando dinheiro à Cecília e a geladeira da casa nunca esteve tão cheia. Nesse meio tempo não foi mais visto bebendo também e dizia-se até que ele era bem-quisto entre a vizinhança. Apanhava os sobrinhos no colégio e era visto sempre divertindo-se junto com eles. O único que ainda não se acostumara com a situação era Adalberto. Isso ficou nítido quando, durante um jantar, Olavo contou uma piada e todos à mesa se desmancharam em risos. Exceto Adalberto.
- Que foi, mano? Tá com algum problema?
- Não. Só acho que a vida é um pouco mais séria do que o jeito que você a encara.
- Pô, Beto! Não fala assim na frente dos meninos! Assim você assusta eles! Eles ficam trauamatizados pro resto da vida depois, sabia?
- Eles tem que saber desde cedo que a vida é uma coisa séria. Não quero eles em roda de jogo nem enchendo a cara por aí, nem fumando maconha.
- Acho injusto você dizer isso. Aliás, você é uma pessoa que nunca dá segunda chance pra ninguém. Esse é teu problema! E tenho dó da tua mulher e dos teus filhos... Eles que não pisem na bola com você!
- Escuta, Olavo: você não ia pra Bolívia?
- Adalberto! - exclamou Cecília.
Mas Olavinho se levantou da mesa, passou a mão na cabeça do sobrinho caçula que se assustara com a discussão e foi pra sala, onde se ajeitou no colchonete para domir. Cecília colocou as crianças na cama e, no quarto, conversou com Adalberto:
- Olha, eu acho que você tá sendo muito duro com ele!
- Duro? Cecília, você conhece esse cara! Ele é um traste! Um câncer!
- Ele é teu irmão!
- Irmão porra nenhuma! Minha mãe morreu numa pior e ele não fez nada. So apareceu depois pra pegar a parte dele na herança. É um bêbado, um degenerado!
- Ele mudou, Adalberto! Tá trabalhando, tá ajudando aqui em casa, gosta dos nossos filhos...
- Joguinho de cena dele, Cecília! Eu conheço muito bem esse idiota.
Cecília suspirou e, antes de se virar de lado para dormir, disse:
- Sabe de uma coisa? Acho que ele tem razão! Você não dá segunda chance pras pessoas. E um dia até eu vou me foder com você.
-----------------------------------------------------------------------------------------------
Adalberto não dormiu direito naquela noite e no dia seguinte não conseguiu trabalhar. Ficou pensando. E se Cecília estivesse certa? Todas as pessoas podem mudar. Olavinho podia estar tentando se regenerar. Ele havia sido muito duro. Mas, porra, era quase um milagre que um cara fodido por natureza como o Olavo se endireitasse de uma hora pra outra. Por outro lado, a circunstância de estar vergonhosamente dependendo de um irmão que sempre o detestou podia tê-lo motivado a ajeitar sua vida. E pensando bem, Olavo nunca fora má pessoa. Ele é que era um rude, duro, descrente na raça humana. Decidiu voltar pra casa e ter uma conversa com o irmão. Iria lhe pedir desculpas e tudo ficaria bem.
-----------------------------------------------------------------------------------------------
Quando chegou em casa, Adalberto se deparou com um estranho silêncio. Notou, porém, que a vizinha da frente percebeu sua chegada e se inquietou um pouco. O que poderia estar acontecendo? Aflito, entrou em casa procurando não fazer muito barulho. Estava armado (aliás, desde a chegada de Olavo à casa, passou a andar armado). Passou pela cozinha e pela sala, que estavam vazias. Ouviu barulhos vindos do quarto. Abriu a porta e ficou petrificado com o que viu: Olavinho e Cecília estavam na cama. A última coisa de que Adalberto se recordou depois foi a expressão de horror de Cecília, misturada com gritos e palavras que ele não apreendeu. E o vermelho do sangue espirrando em suas vistas.
----------------------------------------------------------------------------------------------
Olavo e Cecília tinham razão: Adalberto era um homem que não dava segunda chance a ninguém.

domingo, janeiro 01, 2006

Uma canção pra abrir 2006

(Inspirado, mais uma vez, no blog do André Diniz. Quem não tem talento ou criatividade, copia na caruda, não é, tiozinho do UOLkut? Paga-paaaaaaaaau...)

Essa é pra quem tomou todas na Virada. Eu não tomei nada. Nem para desinfetar.

Alcohol
(Jorge Benjor)

O mago mandou avisar:
Água de beber, água de benzer
Água de banhar
Alcohol só para desinfetar
Eu quero água
Água de beber, água de benzer
Água de banhar
Alcohol só para desinfetar
Eu quero água
Porque o céu é água marinha
Porque o sol é ouro
Porque a lua é prata
Porque a chuva é cristalina
Porque o mar é esmeralda
Porque somos seres terrestres
Porque São Jorge mora na lua
Porque você não vem me dar um beijo
Um beijo de amor e de desejo
Porque eu gosto tanto de você
Eu gosto tanto de você
Eu gosto tanto de você

Na hora do espanto
Não precisa ter olho clínico para saber
Para saber
Que o melhor é ficar tudo em família
Um controle ambiental
Pois contra uma lingua atômica
Nem mesmo um para-raio digital
Cada palavra caçada
É um compasso de um passado
Que foi enterrado
A caça ao fantasma continua porque
O fogo é mais antigo que o fogão
Em busca de uma nova identidade
Na fila dos aposentados
Um radical chic espera a sua vez
Jogando xadrez
Água de beber, água de benzer
Água de banhar
Alcohol só para desinfetar
Eu quero água
Água de beber, água de benzer
Água de banhar
Alcohol só para desinfetar

Em vez de uma nova trombada
Uma marcha ré com dignidade
É melhor do que ficar com pesadelos
Tédio, calça arriada, queda de audiência
Filme queimado
Aquele homem groover
Aquele santo homem
Só porque gostava
De andar de terno branco,
Camisa de seda, cardão de ouro,
Tênis, chinelo ou tamancos
Era chamado de marginal
Subir, descer, entrar, sair
Faz parte do talento individual de cada um
Porque você não vem me dar um beijo
Um beijo de amor e de desejo
Porque eu gosto tanto de você
Eu gosto tanto de você
Eu gosto tanto de você

O mago mandou avisar...

Água de beber, água de benzer
Água de banhar
Alcohol só para desinfetar
Eu quero água
Água de beber, água de benzer
Água de banhar
Alcohol só para desinfetar.



E com a cara de pinguço que ele tem, eu duvido que o Mestre Jorge Benjor usasse o alcohol só pra desinfetar mesmo.

E 2006 está inaugurado oficialmente!