domingo, março 30, 2008

A Mulher de Vidro

Ela tem o corpo tão claro que posso ver as suas veias. No braço, nas mãos, na parte de baixo das costas, perto do cóccix. Me excita olhar aquela pele marcada de fios verdes, onde corre um sangue que deve ser tão quente a ponto de deixá-la incandescente quando seu corpo ferve de excitação na cama. Sinto, perto dela, que meu corpo se contamina de calor, fico febril, sinto uma terrível angústia misturada com um desejo voraz. Sinto-me inevitavelmente impotente. Não há uma solução justificável, cabível, para meu problema.

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A mulher de vidro entrou na minha vida num verão passado e na época eu não refleti muito sobre sua aparição. O primeiro olhar que trocamos me encabulou e dele me lembro até hoje. Era um olhar interrogativo mas que, analisando hoje, acho que me transmitia alguma promessa de cumplicidade. Um olhar como se... nos conhecéssemos de outros carnavais. Ou talvez ela estivesse me esperando, ou não estivesse. Posso ter sido uma surpresa pra ela, como ela foi para mim. Eu não sei dizer. A mulher de vidro me bota confuso.

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Ela não é de vidro por acaso. Posso saber tudo o que se passa dentro da sua cabeça. Enxergo suas veias na pele macia e sigo por essas avenidas até chegar ao que está no seu coração. Eu já vi seu choro e já vi por muitas vezes seu riso desbragado. Sinto uma vontade de nem sei o quê quando ela ri e o som da sua risada me arrepia, e me dá vontade de pular pela janela e cair de pé lá embaixo, como um gato. E quando sou eu quem desperta sua risada, eu sinto ainda uma vontade de abraçar o mundo, de parar os carros na rua, de correr pelado pela rua. Eu me sinto eletrificado, sinto como se o mundo existisse a partir de um desejo dela. Ela pediu o mundo a Deus. Nunca ninguém havia pedido nada a Deus, todos tinham medo de Deus. Mas ela olhou para Deus e, com sua voz amolecida de ternura e seu jeito desconcertante e infantil, sua forma maliciosa e vil de seduzir e cativar a gente, pediu pra que Deus criasse o mundo. E então ele atendeu o pedido e fez em sete dias um trabalho que duraria mil anos. Aí ela sobreviveu aos dinossauros, adormecida nalgum canto quente do planeta, e então Deus deve ter se identificado comigo por alguma razão, porque quis que eu a conhecesse. Deus talvez não suportasse sozinho a presença dela, talvez ela também causasse Nele alguma angústia. Deus e eu somos então cúmplices mudos de alguma prova, de um carma, de uma benção.

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Toca o telefone. Sei que é a mulher de vidro. Eu quero estar no sonho da mulher de vidro. Eu quero me fundir a ela e ser, como ela, inquebrantável. Na mulher de vidro, nos seus grandes olhos luminosos, vive aprisionada um pedaço da minha alma, quanto mais isso soe um lugar comum. Ela sorveu minha alma com um canudinho de refrigerante, desses que corri a buscar pra ela. A mulher de vidro é a grande alegria muda da minha vida. E é minha irrevogável e óbvia tristeza. As pessoas não sabem pelo que estou passando. Todas pressupoem, mas suas desconfianças estão mergulhadas na ignorância da verdade. Ninguém sabe que eu mato ou morro pela mulher de vidro. Ninguém poderia jamais saber se isso é verdade ou mentira.

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Me reviro na cama. A luz translúcida do dia atravessou o vidro e veio bater em mim.

domingo, março 23, 2008

Azedume


Ele ganha sempre.

sexta-feira, março 07, 2008

Portas fechadas

Saiu de casa e tudo pareceu-lhe subitamente diferente. Não mais de vinte passos até a padaria da esquina e, uma vez ao sopé da porta, notou que ela estava fechada. Deu de ombros, sabe-se lá o que poderia ter acontecido com Seu Antunes, o dono. Caminhou em direção à outra padaria, um pouco mais afastada. Fome do cão, queria comer pães de queijo. Deu novamente com o nariz na grande porta de ferro fechada. Começou a refletir a respeito do que poderia estar acontecendo. Seria domingo e ele não se dera conta? Mas oras, ontem foi quarta-feira, dia de futebol à noite. Sentiu-se como saído de um sonho. Seguiu andando pela rua e viu à sua frente o supermercado fechado. Também fechada a farmácia, a videolocadora, a banca de jornal, a pizzaria. As casas todas fechadas e não se via vivalma na rua. Correu ao ponto de ônibus e esperou por alguns minutos. Apareceu o 756 e ele fez sinal. O ônibus parou, mas não abriu as portas. Ele esmurrou a entrada dianteira, fez sinal ao motorista, que apenas lhe fez um gesto como se dissesse "Que posso eu fazer?" e saiu com o veículo.

A noite caía e ele, incrédulo e derrotado, caminhou pelas ruas. Mas ocorreu-lhe que havia um lugar que funcionava nos feriados, dias santos e até finais de copa do mundo. Andou por cerca de quarenta minutos até desembocar na rua escura, a rua dos inferninhos. Chegou ao puteiro que frequentava e não viu os seguranças parados na porta, como era praxe. Então notou que também o lupanar estava fechado. Bateu com violência e as meninas apareceram na janela. Não podiam abrir e não sabiam explicar porquê. Como que para deixá-lo tomado de fúria lasciva, acariciaram-se sob seu olhar e os seios fartos da prostituta mais velha balançavam e vinham bater no peitoril. A provocação não foi bem digerida por ele, que tomado de despeito tratou de sair logo dali. Pôs-se a correr como um desvairado, cada vez mais desesperado na medida em que notava que os restaurantes estavam fechados, as igrejas, as casas de umbanda, os açougues, as oficinas mecânicas, as revendas de carros, os motéis, as lojas que alugam vestidos de noiva, as lavanderias, os fliperamas, a banca do jogo de bicho, a puta que pariu. Ouvia os ruídos que provinham das casas, mas era como se o mundo tivesse se tornado um imenso presídio. Presídio. Também a delegacia de polícia do bairro estava na clausura.

Sentou-se enfim extenuado na guia da calçada. Gostaria de tomar alguma coisa, mas mesmo os botecos estavam fechados. Lembrou-se da canção de Raul Seixas, "O Dia Em Que a Terra Parou". Ia assoviá-la mas, de repente, sentiu que tinha os lábios colados. Entrou finalmente em desespero. Correu pela rua sem olhar e foi atropelado por um carro que passava. O motorista quis socorrê-lo, mas não conseguiu descer do carro, as portas estavam travadas. Ficou durante muito tempo agonizando na rua, pensando que poderia aparecer alguém e levá-lo ao pronto-socorro. Mas então atinou que os hospitais também estariam fechados.

Estariam abertas as portas do céu? Ele preferiu nem pensar nisso. Uma brisa leve lambeu seu rosto e ele sorriu. Deus quando fecha uma porta, abre uma janela, lhe dizia sua finada mãezinha.